Por Felipe Castro
Carta de um socialista para um liberal, pela democracia,
eu gostaria de iniciar pela constatação que você já perdeu, mas eu também. Da mesma forma que entre os candidatos disponíveis nenhum representa o meu projeto de sociedade, tão pouco um dos dois é propriamente um liberal; mas apenas um deles encontra-se no campo democrático.
E foi sob o manto do modelo democrático que esse país foi capaz de estabilizar a inflação, reduzir a pobreza extrema e tornar-se relevante no jogo político internacional. Foi sob esse mesmo modelo que as instituições do sistema de justiça foram profissionalizadas e tornaram-se relativamente independentes, o que as permitiu revelar a corrupção sistêmica entranhada nesse mesmo sistema democrático, que, como tudo na vida, tem seus aspectos positivos e negativos, seus altos e baixos.
Da mesma forma que entre os candidatos disponíveis nenhum representa o meu projeto de sociedade, tão pouco um dos dois é propriamente um liberal; mas apenas um deles encontra-se no campo democrático
Então é necessário mudar tudo isso que está aí? Sim, mas sem falsos atalhos e sem soluções simplistas. Jair Bolsonaro não representa um projeto, antes, o militar reformado canaliza um sentimento difuso de descontentamento generalizado, fruto, sobretudo, da crise político-econômica que atravessa o país. Assim, ao invés de apresentar soluções dialógicas e concretas para as principais questões nacionais, ele acusa um único partido de ser uma organização criminosa, responsável exclusiva por “tudo que está aí”; e seu discurso se resume a isso. Bolsonaro surfa irresponsavelmente numa onda conservadora que desrespeita minorias, faz campanha suja por meio da disseminação de notícias falsas e, como cereja desse bolo indigesto, remete a um passado falseado, onde as coisas teriam sido melhores: a ditadura militar, que supostamente teria moralizado a política brasileira.
No entanto, para além das graves violações aos direitos humanos, cometidas sistematicamente pelos agentes estatais, as quais o candidato do PSL tece elogios recorrentemente, a noção que os militares teriam moralizado a política é falaciosa, como atestam inúmeros documentos diplomáticos de países como EUA e Reino Unido, nos quais está registrado o alto grau de corrupção dos governos militares brasileiros. Foi justamente nesse período, aliás, que empresas como a Odebrecht obtiveram lucros extraordinários e transformaram-se em conglomerados multinacionais, sempre beneficiadas pelos seus vínculos espúrios com o aparelho estatal. Foi também durante nossa última ditadura que os índices de desigualdade social no Brasil dispararam e – é importante sempre lembrar –, numa sociedade extremamente desigual como a nossa, não há bala que garanta segurança pública.
Bolsonaro surfa irresponsavelmente numa onda conservadora que desrespeita minorias, faz campanha suja por meio da disseminação de notícias falsas e, como cereja desse bolo indigesto, remete a um passado falseado, onde as coisas teriam sido melhores
Essa carta é um apelo à memória, mas não a um processo individual e sim a memória coletiva de uma nação, que seja capaz de produzir uma reflexão livre de ressentimentos que obscureçam a razão. Pois não, não é verdade que estão dispostos dois projetos igualmente radicais e populistas, sendo um de esquerda e outro de direita, de forma que estaríamos diante de uma escolha meramente ideológica, um Vasco e Flamengo. Nesse sentido, é fundamental recordar que o Partido dos Trabalhadores concorreu legitimamente, e perdeu, a três eleições presidenciais (1989, 1994 e 1998), antes de vencer as quatro que se seguiram.
No poder, em parte em função das conquistas econômicas que o precederam, o PT conduziu sucessivos governos de coalizão, promovendo uma conciliação de classes (sempre instável) entre industriais, banqueiros, ruralistas e trabalhadores, um projeto que foi capaz de reduzir drasticamente a pobreza extrema (ainda que não tenha reduzido a desigualdade), que desenvolveu programas importantes de inclusão social, como o bolsa família, o minha casa minha vida e a política de cotas nas universidades. Por esses e outros motivos, o partido conta com uma base popular incomparável; composta por mulheres e homens dispostos a uma militância aguerrida. Não enxergar os méritos dessa adesão e reduzi-la a pura e simplesmente a um “populismo de esquerda” é de um elitismo que beira a demofobia.
Foi também durante nossa última ditadura que os índices de desigualdade social no Brasil dispararam e – é importante sempre lembrar –, numa sociedade extremamente desigual como a nossa, não há bala que garanta segurança pública.
Muito longe da perfeição, o fato é que o PT dirigiu o condomínio corrupto do Congresso brasileiro por tempo demais, tempo suficiente para deixar-se misturar a tal ponto que, em termos práticos e éticos, por várias vezes, dificilmente pôde ser diferenciado da maioria dos partidos que compõe o fisiologismo da política brasileira. Não obstante, se num primeiro momento é difícil diferenciá-lo, tão pouco existe um sinal de igualdade, pois, para além da militância singular e do histórico democrático de conquistas sociais, o partido possui um projeto de nação que é disputado por inúmeros grupos dentro da instituição; e é sobre isso que eu gostaria de falar-lhe.
Em poucas palavras, Fernando Haddad é um quadro do PT muito mais alinhado à sua visão do mundo do que você possa imaginar. Basta que você analise como o candidato entregou as contas da prefeitura de São Paulo: no azul e com grande capacidade de investimento; fato que ele não se esquece de mencionar. Além disso, ao longo das próximas semanas, Haddad precisará formar uma grande frente democrática, caso pretenda ter chances de vencer essas eleições, o que significará fazer concessões para o mercado financeiro, para o centro democrático e outros grupos de interesse nos quais você se vê representado.
Em linhas gerais, como não se pode ter tudo, e já que perdemos no horizonte, eu e você, as perspectivas liberais e socialistas, eu venho lhe pedir que fiquemos com a democracia.
Att,
Um socialista desencantado.