O sociólogo francês Pierre Bourdieu falava de uma “inflação de títulos”. Quanto mais diplomas em circulação no mercado, menos valor cada um deles tem. Nada que o senso comum já não tenha capturado, por vezes ouvimos que “antigamente só com ensino médio já se tinha emprego bom”. Qual o nosso problema com uma educação pública de qualidade? Ela inflaciona títulos e quebra privilégios tradicionais das classes médias e altas brasileiras.
A democratização dos Institutos Federais, por exemplo, desvaloriza a formação nas melhores escolas particulares, uma vez que a qualidade da educação nos IFs é equivalente ou superior à destas. Em Leitura e Ciências, por exemplo, os alunos federais estão acima da média dos países desenvolvidos membros da OCDE; em Matemática há um empate técnico com países desenvolvidos, sendo a média federal superior a do ensino privado brasileiro[1]. Os Institutos oferecem educação de ponta, contam com superestruturas e formam em todos os níveis por pouco mais de R$ 16.000 por aluno anualmente (não discriminando o ensino superior nesta contagem)[2]. Além disso os IFs são capazes de forjar redes de circulação de capital social e cultural que podem competir com os circuitos tradicionais destes capitais (festas elitizadas, condomínios fechados, teatros, espaços culturais e gourmet, igrejas “da alta”, ambientes esportivos seletos etc) por meio de novas socializações ali e dali engendradas
“[…] o capital cultural institucionalizado ocorre basicamente na forma de títulos escolares. O grau de investimento na carreira escolar está vinculado ao retorno provável que se pode obter com o título escolar, notadamente no mercado de trabalho. Esse retorno – ou seja, o valor do título escolar – pode ser alto ou baixo; quanto mais fácil o acesso a um título escolar, maior a tendência à sua desvalorização. É o que Bourdieu chama de ‘inflação de títulos'”. (Alicia Bonamino)[3]
Universalizar uma educação pública de tal calibre significa desestabilizar o investimento que as famílias mais ricas têm com a educação de seus filhos, para que entrem nos cursos mais concorridos e nos empregos mais bem remunerados, por meio do “mérito” econômico hereditário e dos capitais sociais e culturais que a parentela acumulou por gerações[4]. A educação pública de qualidade cria um cenário de incertezas para as elites.
Qual a “solução” para essa crise inflacionária? 1. Deslegitimar os IFs e a educação pública a fim de criar as bases ideológicas de seu sucateamento, 2. Oferecer uma educação “pro mercado” para os pobres, que encerre seus títulos majoritariamente nos cursos profissionalizantes para trabalhos mal remunerados, de pouca absorção de trabalho intelectual, 3. Militarizar as escolas para a docilização e fabricação dos corpos desejados, usando a expressão foucaultiana, afirmando não haver outra saída, 4. Impedir uma educação que proponha a construção de conhecimento (educação crítica, i.e. científica, artística e tecnológica) e não a mera reprodução do livro-texto concordante com essa estéril política educacional. Nesse último ponto o partido autoritário da “Escola Sem Partido” fabrica um pânico social contra as escolas, especialmente as públicas, para facilitar a captura destas pela sua ideologia conservadora e profundamente anticientífica, que visa, no campo econômico, a manutenção das relações de classe aqui expressadas.
Todas essas medidas protegem a carreira acadêmica e os empregos intelectuais da inflação que vêm experimentando, ao desdemocratizar o ensino de qualidade, tornando-o novamente privilégio de pouquíssimos. Além do mais, são capazes de baratear a educação de base para os que atualmente precisam pagar uma overdose de cursos e cursinhos na ânsia de ampliar as chances dos filhos entrarem numa federal, hoje com inédita impermeabilidade para os mais ricos, devido também às reservas de vagas.
É a distribuição desigual desses capitais [econômico, social, cultural] desde o berço que irá determinar as chances relativas de todos os indivíduos na luta de todos contra todos na competição social pelos recursos escassos. (Jessé de Souza)[4]
A função desses “novos” programas e medidas na educação pública é resgatar de uma possível democratização maior os capitais que foram ou estão sendo redistribuídos. Com isso tem-se a perpetuação das relações econômicas tradicionais e se dificulta a mobilidade social: a mudança de classe, para cima ou pra baixo. O problema é que assim se estagna o capitalismo brasileiro dentro da matriz atrasada que parte da classe média e as elites desejam, sem fazê-lo entrar como concorrente de peso no mercado internacional de produção de trabalho intelectual e imaterial, científico, de patentes, da indústria criativa etc, com um mínimo de igualdade de oportunidade para quem não nasceu dentro do circuito imporoso tradicional de capitais.
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Referências
Nota: Este artigo de opinião foi inspirado nas proposições teóricas de Jessé de Souza a respeito das relações de classe no Brasil, contidas em “A Radiografia do Golpe” (LeYa, 2016) e também em “A Elite do Atraso” (LeYa, 2017).
https://theintercept.com/2016/12/08/estudantes-federais-tem-desempenho-coreano-em-ciencias-mas-mec-ignora/
[2]
http://www.ifb.edu.br/reitori/15974-em-2016-o-custo-medio-de-aluno-do-if-foi-de-16-mil-por-ano
[3] BONAMINO, Alicia et al. Os efeitos das diferentes formas de capital no desempenho escolar: um estudo à luz de Bourdieu e de Coleman. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 5, n. 45, p.487-594, set. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v15n45/07.pdf>. Acesso em: 27 ago. 2018. Citação na página 492.
[4] SOUZA, Jessé de. Radiografia do Golpe: Entenda como e por que você foi enganado. Rio de Janeiro: Leya Editora, 2016. Citação na página 57.