EDITORIAL
Assim como outras dimensões, a realidade acadêmica em uma sociedade desigual reflete as estruturas de poder e privilégio dessa sociedade. Precisamos pensar e falar sobre as desigualdades e privilégios regionais no campo acadêmico nacional.
Não bastasse a histórica prática de endogenia institucional amplamente conhecida nos departamentos de ciências sociais das universidades públicas do Sudeste, que privilegia a lógica da linhagem entre orientadores renomados e seus alunos prediletos, nos últimos tempos, com a expansão e crescimento das universidades periféricas e o acirramento da competição acadêmica pela inflação dos diplomas nas universidades ditas centrais e tradicionais, os “bandeirantes academicus” resolveram partir para colonizar o Norte e o Nordeste. Se tomarmos como exemplo os departamentos de antropologia e sociologia do Norte e Nordeste, estes transformaram-se em alvos prediletos para a “colonização” por sociólogos e antropólogos com “DNA acadêmico sulista”, quer dizer, comprometidos com linhagens e redes acadêmicas centrais dominantes, descolados e com pouco engajamento e identificação com a realidade local e suas problemáticas e, muitas vezes, mais preocupados com o retorno ao “sul maravilha” e ao mundo acadêmico de “ponta”.
Bem perto de todas e todos nós, sem muito esforço no olhar é possível perceber departamentos constituídos em sua maioria por professores brancos e vindos da classe média oriundos de universidades do Sul/Sudeste. Muitos desses, movidos pelas razões e motivações acima, verdadeiras nulidades acadêmicas, tentam a vida no Norte/Nordeste na base da “carteirada institucional”, pois acreditam que nessas universidades “é mais fácil de serem aprovados”. Se logram êxito, não por acaso com o apoio de “conterrâneos outsiders” já instalados ou de locais subalternos agradecidos porque um dia um “bandeirante estabelecido” lhe acolheu como orientando, passam a “trabalhar” para trazer outros (novos pupilos) de seus grupos centrais; uma obrigação e reverência aos senhores-chefes das linhagens, fazendo girar a roda de um ciclo vicioso de privilégios, violências e desigualdades, que inclui quadros formados fora da região e exclui quadros formados na “casa”.
Quando diante de fracassos ou de concursos em que a norma impessoal e a regra prevalecem, os neófitos da “locomotiva do país” tomam como um insulto ou injustiça sua reprovação. Como assim os colonizados não reconhecem seu colonizador? Mérito? Categoria consagrada somente aos bandeirantes, fora deles não pode existir tal “dom”. Não disfarçam o racismo institucional e chegam a afirmar para concorrentes nordestinos/nortistas que só existe sociologia e antropologia no Sul/Sudeste. De modo arrogante, acham que trazem civilização e ciência, que no Norte/Nordeste não existem talentos acadêmicos e pesquisadores/professores experimentados e de referência. Pior, após passar curta temporada no Norte/Nordeste e acumular currículo, fazendo dessas trampolins profissionais ou estadia turística temporária, procuram outras instituições e cospem no prato que comeram com rapidez, abandonando orientandos, trabalhos etc..
Em tempos de debates sobre colonialidade e decolonialismo, é preciso problematizar sobre as imposturas intelectuais de pretensos sociólogos e antropólogos “sulistas” de espírito colonizador que agem contra o reconhecimento da juventude intelectual forjada no bojo da periferia acadêmica – uns vindos de “fora”, outros aqui já instalados. Precisamos valorizar e defender jovens estudiosos e profissionais que, enfrentando as condições e desigualdades da periferia regional e acadêmica de uma sociedade desigual como a brasileira, conseguiram formar-se com excelência e vocação para o seu ofício acadêmico.
Sim, caros bandeirantes, a Amazon e a Livraria Cultura já realizam entregas no Norte e Nordeste. A internet e os sites de compartilhamento/download de livros internacionais funcionam em nossas terras. Existem sociólogos e antropólogos nortistas/nordestinos que leram e escreveram sobre Foucault, Bourdieu, Elias e Latour. E o mais importante: como no passado, o tempo dos Bandeirantes começa a encontrar seu momento datado. Não são poucos os professores nortistas e nordestinos que começam a tomar consciência da má fé institucional e regional e, mais importante, os próprios estudantes nortistas e nordestinos começam a questionar porque que os “sudestinos/sulistas” que são aprovados em concursos públicos não são a Brastemp ofertada ao preço de ouro, apesar dos nomes de peso que ilustram seus Lattes. Depois de aprovados, não raro tornam-se assediadores e perseguidores de estudantes e colegas professores, por causa do preconceito, ressentimento e frustração que destilam e sentem, pois, incompetentes academicamente, não encontram o reconhecimento dos pares que acreditam ser merecedores. Mesmo com discursos morais sobre igualdade e emancipação, as práticas dos “bandeirantes academicus” mostram uma moral do pau oco.
Deseja saber se o seu departamento é também colonizado por sociólogos e antropólogos bandeirantes do Sul/Sudeste? Aprenda a olhar para o lado e procure saber do DNA institucional de seus professores; observe suas redes, suas estratégias, suas práticas, seu comportamento diante dos “locais” e dos de “fora”, sua soberba seletiva e subserviência indigente. É moralmente pedagógico! É politicamente emancipatório!
Depois de aprovar um “bandeirante academicus” em concurso de universidade do Norte/Nordeste, este tenta organizar o contexto institucional ao estilo colônia e sua divisão de trabalho para aprovarem os próximos camaradas, estrangulando as oportunidades e destinos dos quadros “locais”. Agem colonizando a instituição e colegas, tentam emplacar ao estilo de trem da alegria, definindo “perfis necessários”, e assim manter o controle da “reprodução”.
O colonizador não se define por sua origem, mas por sua mentalidade e prática. É evidente que há cientistas sociais oriundos – e formados – do Sudeste e Sul que não são “bandeirantes”, quer dizer colonizadores, e, por isso, de fato, contribuem para o desenvolvimento da sociologia e antropologia nas universidades do Norte e Nordeste. Não são a esses que nos dirigimos nem é um purismo regional que desejamos. Recusamos a dominação e denunciamos sua violência simbólica e institucional. É hora das universidades periféricas do Norte-Nordeste, os departamentos de sociologia e antropologia, se levantarem e reagirem contra os que as querem de joelhos e de cabeça-baixa, subalternas e sempre prontas para receber, sem questionamento e crítica, os “colonizadores” que, com “altruísmo e renúncia”, decidem lhes trazer supostamente luz e conhecimento.