Search
Close this search box.

O ritual

Compartilhar conteúdo:

Em algum lugar, nesse momento – não sei precisar exatamente onde fica – alguns garotos acuam outro garoto na escola, longe dos olhares dos adultos. Na maioria das vezes o garoto escolhido para a troça é menor em força, ou, aparentemente mais indefeso. E esse mesmo garoto, talvez, cansado de tudo isso, um dia irá dar “o troco”, ou assim planejar sua vingança.

Nem seus professores, nem seus pais, sabiam disso. Seria vergonhoso para esse garoto admitir perante seus pares que teve que recorrer à ajuda de alguém fora daquele círculo em que vivia e que ao mesmo tempo buscava por aceitação – embora o que levasse todo dia daquele “círculo” para casa fosse alguns sopapos e a certeza de que amanhã, no outro dia, começaria tudo outra vez.

Não. O garoto nunca entregou ninguém – muito menos se vingou – O que garantiu a nós, seus algozes, impunidade até onde se estende a minha memória, dos anos que passamos juntos no fundamental.

E como era prazeroso roubarmos o seu lanche todos os dias na hora do intervalo. Porque ele sempre estava nos devendo. Digo roubarmos, mas contentava-me apenas em vê-lo em apuros, assim como os outros que estavam ao meu lado se agitavam; porque não sobrava muito dos despojos depois que os outros garotos durões o pegavam, além do som de nossas gargalhadas – O que naquela selva nos colocava na posição de hienas.

Chegar à posição de hiena também não foi nada fácil. Pois em nossa rude cadeia alimentar um dia estive em sua condição. Distribuindo lanches e mesmo assim sempre devendo. Bastava não menos que um grito de um menino mais velho do que eu para dar-lhe tudo o que eu levava para comer na hora do recreio – o que não era muito- para então ficar o resto da tarde com fome.

Um dia houve, porém, que não aguentei; contei tudo ao meu pai. O que não me livrou de gritos do velho e da sensação de que a culpa era minha, e de que, de qualquer forma, só haveria um tipo de solução pra resolver tal problema como homem. Não por um acaso me lembrei de um revólver que meu pai guardava embrulhado em um jornal. Um 38, mauser, de cano curto, que descobri bisbilhotando suas coisas.

Eu cheguei ao colégio cedo, e fiquei esperando o garoto que me explorava. Deixei que ele viesse pegar o que achava que era seu. Come de costume…

Ao vê-lo se aproximar, fique nervoso. Acho que inclusive ele devia ter percebido. E antes mesmo que dissesse “Cadê o meu dinheiro?”, rapidamente tomei à dianteira e gaguejando lhe disse que havia contado tudo ao meu pai, e que o velho havia ficado uma fera!

Foi assim que esse garoto me deixou de lado – nunca tive a disposição para ser outra coisa além de uma Hiena. Muito menos de pegar o “mauser” do meu pai novamente.

Aprendi a mostrar meus dentes somente tempos depois; quando agredi outro garoto. Quando senti pela primeira vez aquela sensação de poder que leva até a estupidez, e que aplicava a outros garotos, agora, minhas vítimas. Todos emudecidos. E que talvez, um dia, também fariam suas vítimas.

Para nós, dizer o que se passava às escondidas era um sinal de covardia, porque estava implícito em certos códigos no qual estávamos inseridos, e que ao mesmo tempo não entendíamos por completos.  É mais ou menos o que um bandido entende como ética e o que o suplicado percebe com “fé”. Por isso não carregávamos a culpa.

Hoje, ao assistir a um jornal, entendo que se não nos sobra culpados a quem possamos facilmente apontar o dedo, se há apenas o horror e à perplexidade de observarmos o assassino saindo do transe, com a arma ainda quente a chamar pelo pai, é porque talvez a verdadeira culpa resida suas raízes em algo muito mais profundo – Talvez no cerne de toda sociedade.

Não sei o que o gordinho disse em casa, quando lhe deram uma surra com a fivela de um cinto. Quando prometemos ajuda-lo e o vimos ali, sozinho, aplicar o primeiro murro que deu na vida na cara de um garoto maior que ele, para logo depois apanhar. Todos nós, rindo em um canto, enquanto o cinto sibilava seu staccato na pele macia seguidas vezes.

Só depois do riso, o vimos emergir- o gordinho.

Ele estava diferente.