Por Regina Miraaz
Convidada para a Série “Da Correção Política à Censura”
Uma vez, ouvi da socióloga e feminista Beth Lobo uma frase que ficou em minha memória assim: “para destruir um preconceito, é preciso invertê-lo”. Era 1990, a moda era ser politicamente correto e a afirmação me pareceu muito politicamente incorreta. Só uns cinco anos depois entendi que “inverter um preconceito” não é produzir o preconceito contrário, mas imaginar-se alvejado por ele. Para realizar essa inversão, que é uma experiência política complexa, é preciso conhecer a condição do outro: seus problemas, seus desejos, suas diferenças.
Tanto as propostas do “politicamente correto” quanto as do “politicamente incorreto” têm falhado nessa inversão do preconceito. A primeira porque, quase sempre, pretende tutelar quem sofre um preconceito. A segunda porque pretende subjugá-lo. Em ambos os casos, o que se realiza é uma intervenção arbitrária no destino desse outro, sem que sua condição seja conhecida e, principalmente, que seu desejo seja considerado. Talvez, a única atitude política viável seja estar aberto para esse desejo incerto e incômodo que vem do outro.
Ao longo da história, as mulheres têm sido prejudicadas por esses dois tipos de intervenção. Ao movimento feminista cabe combater isso de pelo menos duas maneiras: i) explicitar a condição das mulheres na atualidade e, ii) expressar desejos de mudança e as formas de realizá-los. No texto abaixo, escrito para o blog Plenos Poderes, tentei mostrar que um dos aspectos da condição das mulheres, hoje, é ter seus corpos colonizados e usados como instrumentos de dominação e repressão. E que o desejo das mulheres é que seus corpos não sejam tutelados nem explorados, mas, sim, representem a afirmação de nossa autonomia.
Nem toda nudez será castigada
Do Plenos Poderes – A nudez é um território colonizado pelo machismo. As revistas, os programas, as “produções culturais” e os ambientes de nudez feminina liberada são construídos com substrato sexista como forma de preservar e reproduzir o poder masculino. Quando a nudez é masculina, o “produto cultural” é voltado para o público gay, homens para homens verem.
Às mulheres, sobra o território do corpo coberto. Uma indústria inteira mobilizada para “educar” a mulher sobre seu papel, sua “função”, seu “espaço” na sociedade. Como, quando, o que e por que usar tais roupas? O que mostrar e o que esconder do seu corpo? E, sobretudo, que corpo você deve ter se quiser exibi-lo, vestida na esfera pública, e nua na esfera privada?
Uma pesquisa feita em 2008 pela revista britânica de moda ‘Fabulous’ (infelizmente, a página da pesquisa não está mais no ar) revelou, involuntariamente, que o machismo está por trás da idealização da imagem corporal. As mulheres desejam aquele corpo em que a moda sempre cai bem, mas cujo ideal só é alcançado com uma boa ajuda da genética. Os homens desejam mulheres magras, “mas nem tanto”. E a maioria da população feminina não se encaixa em nenhum dos dois ideais, exibindo medidas bem acima do ideal. Bem, exibindo não é a palavra correta, a palavra correta é escondendo.
Aparentemente, a pesquisa diz: mulheres, vocês não precisam ser tão magras quanto imaginam para serem aceitas. Mas subliminarmente, a pesquisa apenas reforça que o corpo feminino é apenas um objeto de satisfação masculina. Seja como for, a “mulher que quer ser desejada pelo homem” tem que se encaixar na medida certa. A mulher que quer ser aceita e amada tem que ser o que não é (mais magra, menor) ou o que não quer ser (mais curvilínea e rechonchuda, maior). Se você não se encaixa na medida “correta”, sua nudez será castigada com um simples rótulo: “inadequada”.
Em novembro de 2011, a blogueira egípcia Alia Al Mahdi exibiu sua nudez na internet. Feminista, laica e individualista, como se define, ela fez isso em nome de sua liberdade. No Egito, a nudez é um território colonizado não apenas pelo sexismo, mas por uma visão da mulher como inferior ao homem embasada nas tradições religiosas. O apelo de Alia por liberdade foi condenado tanto pelos conservadores políticos quanto pelos liberais por ferir a fé muçulmana.
Fora do Egito, Alia recebeu apoio de várias organizações feministas e, mais ainda, de homens machistas cuja grande “contribuição” para uma sociedade mais justa foi oferecer à jovem acusada de imoralidade um espaço em suas camas. Porque o corpo feminino pode ser imoral no Egito, mas no resto do mundo é principalmente objeto de dominação.
Há pouco mais de um ano, o grupo ativista Femen ganhou espaço na mídia. As “feministas ucranianas”, como são chamadas, saem às ruas exibindo seus corpos nus. Exibem corpos perfeitos em seus protestos contra exploração econômica, a anorexia, a liberdade das mulheres, a pornografia. Elas gritam, elas são polêmicas, elas protestam contra todas as formas de violência. São inadequadas. Mas estão nuas.
O que pouca gente percebe é que, nas fotos dos protestos do Femen, as ativistas aparecem, em geral, sendo controladas, coagidas, ameaçadas ou presas por policiais. E sendo clicadas por fotógrafos da grande mídia sedentos por ângulos avassaladores de corpos femininos. Mas as ativistas do Femen são inteligentes: elas despem muito mais do que seus corpos.
Cada foto que mostra um protesto do Femen revela que o corpo nu não é uma novidade – isso está em qualquer banca de jornal ou site. A novidade é que o exercício da violência desmedida e da repressão ganha espaço de destaque. Ao exibir seus corpos, as ativistas obrigam o próprio oportunismo midiático a denunciar a si mesmo e ao conservadorismo dominador a favor do qual, teoricamente, opera.
A nudez feminina das revistas masculinas e filmes pornográficos, das musas do Carnaval e dos times de futebol nunca será castigada. É a nudez a serviço de seu senhor.
A nudez das ativistas do Femen, de Alia, ou de qualquer mulher que se declare independente do desejo masculino e fuja dos padrões de beleza será castigada pela violência ou pela ridicularização. A nudez exercida em nome da liberdade individual, dos direitos das mulheres, da libertação de imposições mutiladoras opera contra a colonização dos corpos, contra os monopólios do poder e da autoridade, contra a violência ideológica e física. E, por isso, essa nudez será sempre castigada.
Entenda a Série: Da Correção Política à Censura
Regina Miraaz, ou @literariamente (no Twitter), é mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, socióloga, jornalista e feminista. Autora dos blogs Plenos Poderes e Avec Beauvoir.