Search
Close this search box.

Minha Fábrica, Seu Suor: As peripécias de um astuto manipulador

Compartilhar conteúdo:

Por Igor Gacheiro (Professor de Sociologia do IFRN e Ex-Operário da Guararapes).

No dia 12 de agosto de 2009 iniciei minha jornada, que duraria quatro anos, na maior fábrica de roupas do Rio Grande do Norte: a Guararapes Confecções S/A. Durante esse período, passei por experiências muito especiais. Além de construir amizades com pessoas incríveis, tive a oportunidade de refletir, ali mesmo, no chão da empresa, sobre as estruturas da sociedade em que vivo. Por achar oportuno, aceitei o convite de escrever um pouco sobre minhas concepções acerca dos protestos de funcionários da empresa contra a decisão do Ministério Público do Trabalho (MPT) de multá-la.

Flávio Rocha, que hoje assume o papel que fora de seu pai, Nevaldo, na administração da Guararapes, nunca hesitou em assumir seu caráter ambicioso. Foi, inclusive, sua sede por poder e dinheiro o que motivou a expansão das lojas Riachuelo (que também pertencem ao Grupo Guararapes) e a construção de pólos de produção em outros estados do nordeste nos últimos anos. Consciente de sua incapacidade de costurar uma gola de camisa, o empresário viabilizou seu projeto expansionista ao modo clássico do capitalismo: explorando o maior número possível de pessoas.

Foi assim, por exemplo, em 2006, quando Flávio implantou na fábrica o chamado fast-fashion, um método de produção que procurava eliminar toda e qualquer atitude que significasse “desperdício de tempo” na produção. Enquanto estive lá, esse método perdurou por alguns meses, antes de ser abolido pelo MPT-RN.

Lembro-me bem da chantagem imposta pelos patrões para fazer o fast-fashion funcionar: sinais, como os de trânsito, foram instalados acima de cada setor de costura e serviam para alertar sobre seu nível de produtividade, isto é, se as costureiras não cumprissem a meta estabelecida, a LUZ VERMELHA ligava e todos saberiam que ali haviam pessoas “menos produtivas”.

A “recompensa” para os que alcançavam a meta era o direito de escolher peças de roupas com defeito no bazar na Riachuelo instalado na fábrica. O constrangimento causado por essa iniciativa gerou, obviamente, indignação entre alguns operários e, por isso, o MPT-RN interveio. Ressalto que esse é apenas um exemplo de como o fast-fashion oprimia os trabalhadores. Se fosse enumerar todas as iniciativas esdrúxulas que conheci naquela fase, talvez transformaria esse texto num livro, cujo título poderia ser Minha Fábrica, Seu Suor.

 Essa conduta precarizadora dos gestores fez da Guararapes uma recordista de ações trabalhistas no estado. Foi por isso que, em 2013, esses mesmos gestores resolveram criar o Pró-Sertão, um projeto que visava enxugar o número de trabalhadores de sua matriz, localizada em Extremoz, e incentivar a abertura de pequenas facções de costura no interior do RN. O discurso propagado pelos Rocha nos veículos de comunicação era o do “vamos transformar positivamente a realidade econômica das cidades do seridó e do sertão potiguares”. Apesar desse discurso, sabemos que a estratégia tinha como objetivo descentralizar as denúncias de abusos, mais frequentes na capital, e otimizar o abastecimento da Riachuelo através da exploração de trabalho análogo à escravidão. O plano “vingou” por alguns anos, mas o MPT mais uma vez agiu para frear a fúria precarizadora, multando o Grupo Guararapes, obrigando-o a pagar R$ 37 milhões de indenização pelos atos cometidos.

A reação de Flávio Rocha a esse último processo era por mim desconhecida até o dia em que, num grupo do whatsapp de trabalhadores da fábrica do qual ainda sou membro, me surpreendi com uma enxurrada de mensagens, vídeos e fotos manifestando apoio aos patrões. Naquele instante, percebi o quanto estamos imersos num fosso de ideologias que nos separa de uma vida emancipada, livre. Nas conversas desse grupo, a principal evocação dos trabalhadores remetia a ideia de que “precisamos honrar essa família que nos garante pão e teto”. Estava clara a manipulação! Depois disso, soube também, através de portais da internet, que Flávio Rocha promovia execração pública da procuradora responsável pelo processo, Ileana Mousinho. O principal argumento do empresário gira em torno do fato de essas pequenas confecções não serem administradas pela Guararapes, que, por isso, não merece ser punida. Flávio tenta se eximir da responsabilidade que tem na promoção desse cenário de caos que garante o aumento de seu lucro.

Ontem, dia 21 de setembro, Flávio organizou seus funcionários em pequenos protestos, contra a ação do MPT, pela cidade de Natal (o que já havia ocorrido em frente a fábrica em Extremoz há poucos dias), publicizando, assim, sua capacidade de manipulação. Existem três fatores que, em minha opinião, foram decisivos na construção desse cenário.

Primeiro, evidencia-se o sucesso do discurso, da ideologia, que constrói a figura do “homem de bem, que estudou, trabalhou e, por isso, merece ter o dinheiro que tem”. Sob as luzes do conceito de ideologia de Marx, vemos a realidade sendo transformada em fantasia. É como se a maioria esmagadora da sociedade fosse mau caráter, burra, preguiçosa e, por isso, merecesse viver na miséria em que vive. Não podemos permitir que esse discurso, liberal-conservador, oriente qualquer debate. Sabe-se que todo grande empresário não possui dotes que extrapolam sua capacidade de tratar outras pessoas como inferiores e passíveis de exploração. Os grandes empresários são movidos pelo desejo de dominar, de oprimir, de menosprezar. Não existe qualidade que se distancie da moral usurária no perfil do grande empresário, mas os trabalhadores em geral, atingidos por mentiras cotidianamente disseminadas pela mídia, pela escola e pela religião, concebem o patrão como o “modelo ideal de homem”, não percebendo que toda riqueza desse “homem ideal” foi garantida por suor alheio, suor de gente pobre.

O segundo fator remete aos efeitos da aliança entre Estado e Mercado. Não é à toa que os trabalhadores da Guararapes “compram” a luta do patrão com tanta facilidade. Existe um arranjo, cuja responsabilidade de efetivação é totalmente do Estado, para que isso ocorra. Residente das periferias da Grande Natal, a maioria dos operários passou a vida longe de boas escolas, bons hospitais, opções de lazer ou cultura. O salário mínimo cumpre um papel salvador nesses casos. E essa situação de completo abandono e necessidade de redenção se agrava em relação às mulheres, que ocupam a maior parte dos postos de trabalho na empresa, mas não encontram qualquer representatividade nos altos cargos de gestão. A ausência de políticas públicas que minimizem o machismo constitui uma postura de severa hostilidade contra as mulheres. Os patrões e todos os outros gestores homens da fábrica aderem à função de hegemonia com perspicácia, jogando bem o jogo da dominação masculina.

Pouco ouço falar sobre o que discrimino como terceiro fator decisivo para os desdobramentos que o caso tem apresentado: a endêmica apatia do Sindiconfecções, sindicato que representa os funcionários da Guararapes. Durante os quatro anos em que estive sob o telhado da fábrica, constatei o total descrédito que o sindicato tem entre os trabalhadores. Pouquíssimo atuante e totalmente burocratizado, o Sindiconfecções deve conceber esses protestos organizados pelos Rocha como “um tapa na cara”, pois nunca conseguiu mobilizar a categoria, mesmo diante de ataques brutais, tal como o processo de demissão em massa ocorrido antes do Pró-Sertão. Sem confiar no órgão que deveria lutar por sua estabilidade no emprego, as costureiras, engomadeiras, embaladores, cortadores fixam no patrão sua esperança de trabalhar com segurança.

Nesse momento, a população potiguar precisa prestar solidariedade aos operários que, assediados pelos desígnios de Flávio Rocha, fazem coro à humilhação da procuradora Ileana. Essa solidariedade, obviamente, não pode estar ancorada no reforço desse coro, mas na capacidade crítica, que nos garante a relativização dessa postura. Ao mesmo tempo, é preciso estender a compreensão de que cada máquina que ocupa os galpões da fábrica foi comprada com os recursos gerados por esses trabalhadores, ou seja, se a Guararapes precisa ficar no RN, precisa porque ela pertence aos operários que a construíram. Toda sanção aplicada contra os donos da empresa em decorrência de práticas irregulares deve ser concebida como uma vitória da justiça, como uma atitude que alerte os empresários quanto aos seus limites nessa incessante busca por poder.