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Carnaval e Candomblé

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Especial para a Série “Da Correção Política à Censura”

Sou da corrente darcyrribeiriana, aquela mesma que reputa à diversidade etnocultural brasileira uma das principais razões de sua beleza enquanto nação. Mas esta, que parece ser uma opinião hegemônica evidenciada, sobretudo, no Carnaval, não se reflete na praxe dos demais dias do ano, principalmente no que diz respeito às nossas raízes africanas.

Primeiro, é importante ressaltar que é impossível falar de cultura, arte e tradição afrobrasileiras sem antes passar pelo Candomblé e demais credos de matriz africana enquanto manifestações não apenas religiosas, mas também culturais: ritmos, danças, canções, afoxés, catimbós, batuques, cores, vestimentas e a própria gastronomia são representações que se interseccionam e definem os ritos religiosos umbandistas e candomblecistas trazidos pelos escravos e escravas na desumana insalubridade dos navios negreiros.

Apesar de ser um dos alicerces da cultura popular brasileira, é bastante corriqueira a perseguição que as manifestações culturais e religiosas de origem africana sofrem desde os idos coloniais – perseguições inclusive de caráter institucional, como ocorreu na ditadura varguista (aqui vale lembrar a já falecida Maria Escolástica da Conceição Nazaré, conhecida como Mãe Menininha, do tradicional terreiro do Gantois, em Salvador, cantada por nomes como Dorival Caimmy, Gal e Maria Bethânia e símbolo da luta contra a intolerância religiosa e contra a repressão policial que sofriam os terreiros na década de 30, enquadrados na draconiana Lei de Jogos e Costumes).

O período do Carnaval em especial, no entanto, costuma se apresentar como um curto lapso de tolerância onde, em nome da diversão, a sociedade branca se despe de seus preconceitos e adota uma postura não só de respeito, mas também de celebração a minorias perseguidas e estigmatizadas (vide, também, os/as homossexuais e transgêneros). Assim, o que é cotidiana, ignorante e pejorativamente tachado de “macumba”, vira no Carnaval refrões e coreografias exaustivamente repetidas, principalmente entre as restritíssimas cordas de trios elétricos destinadas de forma prioritária para brancos de alto poder financeiro, os mesmos que costumam alimentar os piores preconceitos de cor e de classe.

O Carnaval é período fértil para o surgimento de hits com ritmos e letras ressaltando os costumes afro-brasileiros, ritmos que, entoados como verdadeiros mantras, são quase sempre seguidos de sacolejantes movimentos corporais. “Maimbê dandá”, por exemplo, composição de Carlinhos Brown, gravada por Daniela Mercury e cantada por uma infinidade de artistas, tira seu título da matriz linguística nagô/iorubá, originário das tradições da nação angolana, significando “andar estourado”.  A famosa canção “Dandalunda”, imortalizada na voz de Margareth Menezes, trata de uma saudação a uma das manifestações de Oxum, orixá das águas doces sincretizada em alguns lugares com Nossa Senhora da Conceição, onde se roga à deusa pela paz e tranquilidade ao mundo.

Os exemplos são infindáveis. Sucessos como “Toté de maiangá”, também de Margareth Menezes, “Ashansu”, regravado por Carlinhos Brown e “Meu pai Oxalá”, popularizado por Daniela Mercury, são comum e indiscriminadamente cantados pelos mesmos foliões que, imersos na ignorância, marginalizam as tradições religiosas e culturais de origem africana quando situadas fora do contexto do Carnaval. O próprio termo “axé”, é bom que se diga, tem sua etimologia também ligada à língua iorubá, significando “energia”. “Olodum”, por sua vez, é uma referência a Olodumaré – ou Olorum -, orixá criador de tudo.

A mídia comercial e a indústria fonográfica, ao embalar a “macumba” com um multicolorido veludo e pô-la à venda nas micaretas a preços pouco acessíveis, neutraliza momentaneamente o preconceito ao adaptar suas nuances às demandas do mercado e à voraz e predatória lógica do consumo: a “macumba” permanece sendo “macumba”, mas agora higienizada, comercialmente lapidada e separada do segregacionista contexto social na qual se encontra para enfim poder ser consumida. Sob os atabaques e ritmos nagôs tocados em cima do trio, não comparecer à festa e se refestelar entre as cordas representa o mais categórico sinal de decadência. Ademais, não há o risco de encontrar pretos, pobres, “macumbeiros”, pais, mães, filhas de santo e babalorixás e ialorixás entre as cordas; no máximo, como as próprias cordas, separando o seleto grupo que protegem daquele indesejável espaço a que se convencionou chamar de “pipoca”, não menos público, todavia, que o chão protegido pelos humanos cordões sanitários dos carnavais privados.

Onde não há, portanto, a conveniente redução das tradições afro a meros objetos de consumo por parte da indústria de entretenimento, costuma haver marginalização e perseguição, como se estivéssemos tratando de coisas completamente diversas. Triste regra que evidencia as contradições de uma sociedade que ainda não amadureceu o suficiente para compreender o valor do respeito e da tolerância, ressignificando hábitos, valores e concepções socioculturais que tenham porventura a audácia de se originarem fora do hegemônico eixo eurocêntrico, absoluto paradigma de estética e civilização para alguns desavisados.

 

Entenda a Série: Da Correção Política à Censura