Editorial
O Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFRN é um programa com quase 40 anos de existência. Gerações e quadros importantes da vida pública e intelectual do estado foram formadas pelo PPGCS. Esta semana, no entanto, uma triste, mas não surpreendente, notícia atingiu o PPGCS-UFRN: o programa de pós graduação (Mestrado e Doutorado) foi avaliado pela CAPES com o conceito 3 e 2, respectivamente – em uma escala cuja nota máxima é 7 (aqui). Os desdobramentos imediatos, para o doutorado, são a recomendação de descredenciamento, restrição de recursos e suspensão de futuras seleções.
Para a Carta Potiguar, a notícia é particularmente triste. Como é sabido, a CP foi criada por estudantes oriundos e pós-graduados do curso de Ciências Sociais da UFRN. Ao longo de nossa história, contamos com diversos colunistas cientistas sociais, e, desde o início, mantemos um espaço preferencial para as contribuições discentes e docentes do curso de Ciências Sociais – artigos e reflexões, aliás, que ajudaram enormemente na credibilidade e qualidade que a Carta Potiguar alcançou.
Um dos mais importantes objetivos de nosso projeto editorial sempre foi contribuir para uma maior publicização do potencial analítico e crítico das ciências sociais. A afinidade eletiva que reuniu jovens cientistas sociais em torno de um mesmo projeto foi exatamente a crença compartilhada no poder das ciências sociais para a construção de compreensões mais embasadas sobre os problemas e dilemas públicos da sociedade, assim como para o fortalecimento de uma esfera pública mais racional, reflexiva e comprometida com valores e práticas democráticas e igualitárias na defesa das liberdades, da diversidade e dos Direitos Humanos.
Retomando, como já dito mais a cima, a avaliação negativa que se abateu sobre PPGCS-UFRN não é um “raio no céu azul”. Ela é o resultado final de um estado de coisas que se arrasta no programa há algum tempo. O PPGCS encontra-se, já há alguns anos, academicamente quase inerte, como que à deriva, se movimentando mais por conta das rotinas institucionais obrigatórias (reuniões, editais internos, seleções, bancas, aulas) do que por impulsos, projetos e metas intelectuais e pedagógicas coletivamente definidas e perseguidas. Isso se deve, a nosso ver, por conta da carência de um projeto acadêmico e uma identidade sólidos quanto ao ofício das ciências sociais – problema que começa, portanto, na própria graduação, a qual, aliás, obteve nota 3 no Enade, e que se manifesta na pós, entre outras coisas, na quantidade bem acima do razoável de alunos provenientes de outras áreas. Essa carência é reforçada, entre outros fatores, pelo efeito sectário e autofágico das disputas internas do departamento, as quais, pelo grau de conflito, ressentimento e intransigência logrados, convertem a divergência, as querelas políticas e os grupos de interesse e de afinidades na razão de ser das práticas e decisões docentes com respeito aos rumos do curso em geral, logo, com amplos reflexos no programa de pós.
Desse modo, o que de fato deveria constituir a razão de ser da universidade e de um programa de pós graduação, a formação, a produção de conhecimento, o debate qualificado, é relegado a um segundo plano, submergido por questões, interesses e sentimentos extraacadêmicos. O cansaço e a desmotivação intelectual de parte do corpo docente, a falta de renovação qualificada em virtude de concursos mal conduzidos e pouco criteriosos e uma concepção “líquida” e dispersa de ciência social que povoa a cabeça de alguns completam o quadro.
Assim, ao invés de fomentar uma identidade disciplinar e profissional coesa e bem definida do que significa ser um cientista social (sociólogo e cientista político) e de quais são as competências e disposições essenciais e específicas de seu saber/fazer como pesquisador e docente, o PPGCS se acomodou por anos, mais por negligência do que por convicção propriamente, a uma concepção, digamos, “líquida”, rarefeita, protocolar e pouco exigente de ciências sociais; logo, frágil em conseguir transmitir e assegurar pelo ensino, pelo exemplo e pela prática de seus docentes o domínio e o exercício das ferramentas e da vocação do ofício de uma ciência social densa, especializada e atraente para os seus estudantes.
Sem projeto, sem clareza e convicção acadêmica quanto a própria disciplina e o valor da formação, o que resta é um saber pouco apegado à especialização teórica e metodológica rigorosa, à defesa da vocação científica e profissional das ciências sociais na explicação e investigação da realidade social, pouco animado pela pesquisa empírica, pela produção científica e pelo debate teórico-acadêmico. Dito de outro modo, ciências sociais sem vocação, sem espírito nem paixão.
O relatório da Capes confirma cabalmente o baixo interesse e disposição docente pela produção acadêmica. A pontuação da produção total (artigos e livros) por docente permanente do PPGCS-UFRN foi de 0,06 numa escala de 0 a 1, o que rendeu ao programa a penúltima posição numa lista com mais de 50 programas (Relatório de Avaliação 2013-2016 – Quadrienal 2017, tabela III, pag 44). Com esse incipiente indicador, a crítica – pertinente, diga-se – ao produtivismo e ao homo lattes perde, no entanto, completamente o sentido.
Diante desse cinzento quadro, não é por acaso que parte dos pós-graduandos e pós-graduados pelo programa sentem-se desorientados e inseguros quanto ao real sentido e utilidade das ciências sociais em termos profissionais e pessoais; muitos, por isso, inclusive, acabam engrossando as fileiras da precarização, procurando outras carreiras, adoecendo emocionalmente… Nessas condições intelectualmente infrutíferas e desabonadoras para o exercício científico pleno das ciências sociais e para uma identificação subjetiva forte com a profissão, o espaço da pós, o ambiente de conhecimento e trocas intelectuais que deveria ser estimulante e vivo torna-se, com efeito, pobre, enfadonho, solitário e, por vezes, perigoso para a construção de carreiras vocacionadas.
Salvo louváveis exceções, principalmente entre os estudantes e alguns professores, o desapreço intelectual pela pesquisa, a parca ambição científica, a negligência pedagógica e a irresponsabilidade acadêmica de alguns docentes tem sido as marcas do PPGCS-UFRN. O resultado é um Programa que frustra, em grande medida, as expectativas intelectuais de seus estudantes. Seu descompasso com os principais parâmetros de produção das ciências sociais no Brasil e no mundo é notório. Basta comparar com a realidade de outros programas, mesmo os de universidades vizinhas. Novamente, com as devidas exceções, a pouca visibilidade e inserção do PPGCS-UFRN no debate e eventos nacionais a disciplina e a preferência de muitos egressos do curso de Ciências Sociais por trilhar a continuidade de seus estudos em outros programas de pós na mesma universidade (Políticas Públicas, Educação, Filosofia) ou em outras universidades são sintomas flagrantes e preocupantes que atestam, repitamos, já há algum tempo, o debilitado estado intelectual e acadêmico do PPGCS-UFRN.
O descredenciamento de um doutorado em ciências sociais é uma situação grave e lamentável, ainda mais quando o país e o Rio Grande do Norte em particular padecem as duríssimas consequências sociais das crises econômica, política e da segurança pública. Nesse sentido, precisamos dizer, deixar que um Programa de quase 40 anos chegue ao ponto e risco de cancelamento ou restrição de suas atividades em virtude da inanição acadêmica é, no contexto em que vivemos, um ato de indesculpável irresponsabilidade social e que deveria causar vergonha e indignação.
Afinal, são nos momentos de crise e de anomia social, de recrudescimento de obscurantismos e de confusão intelectual sobre as raízes dos dilemas societários, como vemos fartamente na sociedade brasileira atual, que as ciências sociais, com seus conceitos e pesquisas, se mostram em seu fulgor e relevância para cumprir o seu papel público e civilizatório como ciência e conhecimento fundamentado sobre as relações humanas. A sociologia, como sustenta o sociólogo Michael Burawoy, ganha significado exatamente como um saber, em última análise, comprometido com a sociedade civil, isto é, com pesquisas, produção de conhecimento, análises, levantamentos, debates, críticas capazes de iluminar os problemas sociais. É para isso que a sociedade financia os cursos e programas em ciências sociais.
Quem perde com o enfraquecimento do PPGCS-UFRN e com um possível descredenciamento do doutorado não são, em absoluto, os professores, os estudantes e a universidade, mas principalmente a própria sociedade potiguar. No momento econômico e institucional delicado que esta atravessa, com inúmeros aspectos da sua realidade política e social (desemprego, crise carcerária, violência contra mulheres) clamando por estudos e reflexão séria, fechar as portas para o desenvolvimento de pesquisas e investigações sociais significa fechar uma fonte de potenciais contribuições para a construção de compreensões e soluções dos problemas que vivenciamos. Como afirma outro importante sociólogo, Pierre Bourdieu, através da produção sociológica e da atuação dos sociólogos, a sociedade na qual estes vivem e sobre a qual estudam volta um momento sobre si mesma, reflete sobre si mesma, e, assim, através dos sociólogos e de suas pesquisas e intervenções, o juiz, a promotora, o político, o empresário, a jornalista, o trabalhador, o artista, o estudante, a mãe, o policial podem saber um pouco mais e melhor sobre o que são, o que fazem e as condições e realidade em que vivem.
Por último, há de se lamentar, também, porque tal situação, desgraçadamente pelos tempos em que vivemos, ajuda a jogar água no moinho da ignorância e da intolerância dos movimentos anti-pensamento crítico, tais como o Escola Sem Partido, Ideologia de gênero e congêneres, para os quais as ciências sociais são um reduto de “charlatões intelectuais” e militantes políticos mais comprometidos com o ativismo e com ideologia política do que com a produção de conhecimento.
O momento do PPGCS-UFRN é para crítica, reflexão, entendimento e, principalmente, mudanças. As críticas são duras não somente porque a situação assim exige, mas porque cultivamos uma convicção sincera na força e contribuição intelectual das ciências sociais para compreender os obstáculos que atravancam a construção de uma sociedade mais justa e esclarecida. Também porque acreditamos que muitos docentes, estudantes e ex-alunos do PPGCS-UFRN compartilham dessa convicção, do sentimento de indignação e da vontade de elevar a sociologia e a ciência política em nosso estado para um patamar diferente e destacado de legitimidade coletiva e reconhecimento científico.
Portanto, é indispensável que tenhamos um Programa de Pós Graduação forte, à altura de tal missão e expectativas, formado e abraçado por profissionais e estudantes que desejam incorporar o ofício e o habitus do cientista social em sua plenitude, formados e estimulados a praticar à imaginação sociológica e produzir reflexão com comprometimento para consolidar uma ciência social, no RN, a um só tempo pública, crítica e investigativa. São essas as bases sobre as quais deve-se reerguer o PPGCS-UFRN da negligência intelectual, da irresponsabilidade acadêmica e do saber pastiche e líquido que, infelizmente, produziram o atual estado de coisas e, assim, oxalá, possamos, como sociedade e acadêmicos, usufruir das ciências sociais com vocação – o que é muito mais importante e significativo de perseguir do que a satisfação cega e irrefletida dos critérios de produtividade da Capes e seus conceitos.
O PPGCS-UFRN precisa reagir, precisa se reinventar e se refundar como programa de pós graduação. Não para atender às instâncias burocráticas de avaliação do Estado, mas para realizar a finalidade essencial das ciências sociais, qual seja, contribuir com o conhecimento e o esclarecimento acerca do mundo social e sua força sobre a vida das pessoas, suas relações, sua história de vida, suas perspectivas de futuro, seus pensamentos, seus sentimentos e crenças.
UMA CARTA PARA OS AMIGOS ACROBATAS: AINDA SOBRE O PPGCS DA UFRN
No filme “Entrevista com o Vampiro”, há uma cena em que Louis de Pointe du Lac (personagem vivido pelo ator Brad Pitt) em sua busca pessoal por saber o significado de sua existência como vampiro, chega num teatro localizado em Londres e onde se depara com um grupo de vampiros decadentes resumindo suas vidas a serem (maus) intérpretes de si mesmos. O choque de Louis não é apenas com a cena tragicômica, mas também com a pobreza de propósitos que encontra naquele lugar. Louis, inicialmente, parecia acreditar ter encontrado na figura de Armand (Antônio Bandeiras) o seu Zarathustra, mas logo percebe que é Armand quem acredita ter encontrado em Louis seu salvador daquele teatro de espíritos decadentes. Louis em tão pouco tempo de existência como vampiro, aos olhos fascinados de Armand, tinha muito mais a ensinar sobre o devir do que aprender sobre o passado. Logo despertou a inveja de Santiago (Stephen Rea), um vampiro boçal daquele ninho de espíritos de decadentes, que conspirou contra o que constituía o talento “artístico” de Louis: expressar sentimentos autênticos.
Como o “teatro dos vampiros”, o PPGCS UFRN, para alguns professores, professoras e estudantes, parece vocacionado a ser apenas um refúgio de seres destreinados e sem talento. Quando pressionados pela “tensão vertical” da exigência institucional de educarem para serem superados, esse mesmo grupo de professores prefere o conformismo de reproduzirem réplicas si mesmos: enfadados com a própria profissão e saber.
Ao invés de travarem a luta heroica de educar tragicamente para formarem melhores homens e mulheres que eles foram e são, um bom número de professores do PPGCS UFRN prefere, a exemplo dos vampiros decadentes de Londres, ser intérprete do que há de pior na burocracia acadêmica: intelectuais sem espírito e sem vocação. O Homo Academicus de ciências sociais da UFRN não é aquele descrito por Pierre Bourdieu, nem muito menos o Homo immunologicus do qual fala Peter Sloterdijk. Mas um Homo Trivium. Nem orgulhoso, nem imperfeito, apenas um habitante da trivialidade.
Esses homens e mulheres não olham para cima ou para baixo, mas para os lados como caranguejos. O cientista sem qualidades. Não cultivam o projeto de fazer da ciência uma atividade artístico-acrobática. Um exercício de ascetismo escolástico dirigido para transitar o ser humano do pensamento “comum” para o pensamento “extra-comum”. Talvez desejassem fazer da ciência uma arte!
Mas o que é a prática científica comprometida com a autossuperação senão uma arte acrobática? Talvez os professores triviais de ciências sociais não tenham entendido a mensagem expressivista de Herder! Que todo ato humano é potencialmente criativo e que o “artista” (gênio criador) habita adormecido em todas as práticas, inclusive no ofício da ciência. Entendida assim, a prática científica é uma ginástica física e mental que desvela o artista, sobretudo, quando “cria” novos e melhores homens e mulheres e não apenas reproduz seres triviais com títulos de “mestre” e “doutor”. Essa verdade oculta da natureza artística e atlética da prática científica chegou ao jovem Marx via Schiller; em Nietzsche encontrou morada no seu programa inacabado de ascetologia geral; em Max Weber e em sua compreensão trágica do papel do cientista social e do conhecimento diante dos dilemas e fraturas da cultura moderna; em Foucault e seu projeto de uma filosofia e ética como “estética da existência”; por último, em Sloterdijk tornou-se um capítulo dos seus estudos de antropotecnologia. Indiferentes a essa nobre antropologia profunda da arte científica, muitos são os professores do PPGCS UFRN que sofrem a neurose da repetição. Do 3, que não é o símbolo de “fé, esperança e caridade” na teodicéia cristã, nem o de “perfeição” na filosofia de Pitágoras. O PPGCS precisa de saltos, precisa de acrobatas.