Quando a Mercedes-Benz ilustrou, recentemente, sua campanha publicitária com a consagrada imagem do revolucionário Che Guevara, ela conseguiu reunir pela indignação castristas e anticastristas, apoiadores do Regime Cubano e opositores. Os cubanos anticastristas consideraram uma ofensa a empresa alemã valer-se da imagem de um “assassino em massa”, de um “gangster do ódio” responsável pela perseguição ao povo cubano. Num sentido similar, os mais entusiastas com a figura de Che definiram como abusivo e desrespeitoso o uso da imagem de um homem cujo ideário e atividade militante nada tem a ver com os objetivos comerciais e de lucro que a Mercedes-Benz ambiciona atingir com a instrumentalização da fotografia do guerrilheiro.
Dessa vez, o ímpeto publicitário foi mais além da mera reprodução da consagrada imagem de Che. Com o auxílio de ferramentas estilo Photoshop, a estrela vermelha de cinco pontas que coroa a boina do guerrilheiro se transformou no clássico emblema da Mercedes – signo de status de ricos por todo o mundo. O objetivo da campanha publicitária é, digamos, “altruísta”: diminuir as emissões de gases nocivos ao meio ambiente pelo incentivo a carona mediante a localização das pessoas desejadas via a tecnologia das redes sociais.
À despeito das emoções e ideologias políticas em jogo, o fato é que a dimensão alcançada pela famosa fotografia de Che capturada em 1960 pelas lentes de Alberto Korda não é senão obra do próprio capitalismo e de suas tecnologias de comunicação. Com elas, a indústria cultural e a publicidade capitalistas estamparam todo tipo de mercadoria com o rosto do revolucionário argentino: de perfumes franceses à marcas de tênis, passando por bebidas, camisetas, bonés, etc.. Ironicamente, como todos sabem, o ícone das esquerdas se tornou também um ícone, ou melhor, uma marca das mais lucrativas do mundo comercial.
A foto de onde se projeta uma face altiva de cabelos desgrenhados e olhar remoto não retrata simplesmente o rosto de Che. Ela é mais do que a identificação de uma pessoa específica, individual. Diz respeito, antes e mais fundamentalmente, a um imaginário de ideias, representações e significações tecidas e indexadas neste rosto transformado em significante, portanto, rosto despersonalizado e instaurado como suporte para outras imagens e fórmulas. O rosto, assim, não é tanto Che Guevara, a pessoa, quanto é de ideias como “juventude”, “rebeldia”, “liberdade”, “revolução”, “ousadia”, “sonho”, “idealismo”; imagens e apelos significativos com as quais a publicidade e o marketing sabem, habilmente, jogar para mobilizar os desejos de consumidores – mesmo os dos militantes anticapitalistas – apesar da pessoa individual Che Guevara e sua ideologia política, radicalmente contrária às “frivolidades burguesas”.
Che Guevara foi transformado, pela publicidade e o consumismo, num significante flutuante do capitalismo contemporâneo. A instrumentalização de “seu rosto” é uma das provas de força da redundância cínica e do caráter profanador do capitalismo. É porque o capitalismo é uma religião secular que profana todo tipo de ícones, tanto os seus quanto de outros credos, que ele não conhece reverência ou temor algum diante dos deuses. Importa-o tão somente aquilo que pode gerar valor. Assim, tudo o que pode parecer valor e despertar desejos, seja vivo ou morto, sagrado ou profano, interessa ao capital como ornamento universal e ícone de adoração de seu culto. Mas tão somente enquanto for capaz de produzir valor, dinheiro e lucro. Ao capitalismo, para alcançar os próprios interesses, tanto faz destruir deuses, cosmologias ou recriá-las.
Marx, no Manifesto Comunista, já percebera este ímpeto profanador da dinâmica de contínua transformação do capitalismo. Diante de seus objetivos de acumulação ele não conhece obstáculos suficientemente sólidos nem motivos suficientemente sagrados para recuar: “Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profano…”
Podemos afirmar, com segurança, que parte significativa da flexibilidade e capacidade autotransformadora do capitalismo, esta eficácia quase mágica de renovação que tem ao longo da história espantado economistas, historiadores e sociólogos, se deve a esta sua disposição de profanação dos ícones e ideários exteriores, de inverter os seus sentidos originários e colocá-los ao serviço de sua empresa. O uso comercial e publicitário da figura de Che Guevara é um exemplo banal mas contundente dessa capacidade de incorporação e transformação.
Como bem percebeu Luc Boltanski e Eva Chiapelo em Novo Espírito do Capitalismo nem mesmo os repertórios críticos do capitalismo, como as demandas de autenticidade e criatividade da contracultura da geração de 68, escaparam ao poder de profanação capitalista; basta observar o que as empresas exigem atualmente como competências profissionais indispensáveis e o que o mundo da propaganda alardeia como distintivo em seus produtos.
O mundo comercial e o imaginário publicitário capitalistas não marcham sem os ícones e ídolos. Sabemos todos que se tratam de falsos ídolos, de puro fetichismo. Mas, assim como o funcionamento da máquina capitalista, também a este se serve com mentiras, cinismo e devoção.
Para mover-se com o máximo de eficiência, a locomotiva capitalista necessita queimar deuses e demônios para manter viva a chama que arregimenta as pessoas e suas energias produtivas e consumistas. O problema é que no panteão capitalista, exceto o dinheiro, não existem deuses imortais.