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Fascismo, sexo e poder em “Tras El Cristal”

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Um filme com aura maldita e perversa. Quando exibido no Festival de Berlim, o seu diretor, o espanhol Agustí Villaronga, foi insultado e quase agredido por espectadores. “Atras El Cristal” (1986) acompanha um médico pedófilo nazista que, sentindo-se culpado pelas atrocidades cometidas nas experiências com crianças em campos de concentração, tenta um suicídio mal sucedido. Tetraplégico, junto com sua esposa e filha, foge para um casarão no interior da Espanha, preso a um bizarro pulmão de ferro que o mantém vivo. Até que aparece um rapaz soturno que se oferece como enfermeiro. Uma antiga vítima do carrasco procurando vingança? Seria um clichê hollywoodiano muito tranquilizador. Villaronga opta por caminhos bem incômodos – a perversa conexão psíquica entre sexo e o fascínio pelo poder, a violência irracional que esconde sempre um desejo alienado e a metáfora de como a sociedade pode ser lentamente seduzida pelo ardil do fascismo.

“O sexo liga as pessoas nos primeiros tempos, mas o que mantém o interesse, a longo prazo, entre elas, é o poder” (Chiang Ching)

Quem teve coragem de assistir até o final ao filme Saló ou 120 Dias de Sodoma, do diretor italiano Pier Paolo Pasolini, deve lembrar da cena final: dois adolescentes, vítimas de perversões sexuais dos libertinos fascistas durante o filme, terminam como colaboracionistas, com metralhadoras penduradas no ombro e dançando juntos ao lado de um gramofone, indiferentes, enquanto as vítimas apontadas no caderninho das transgressões são torturadas cruelmente no pátio em frente ao castelo.

Pois Tras El Cristal (1986), filme de estreia do diretor espanhol Agustí Villaronga, parece continuar de onde Saló parou em 1975. Se na obra de Pasolini acompanhamos uma adaptação fiel da obra de Marquês de Sade “Os 120 Dias de Sodoma” misturado com um evento histórico (a criação da República de Saló em 1943 por Mussolini) no qual descreve as torturas, sevícias e mutilações de prisioneiros pelos líderes fascistas, Tras El Cristal Villaronga mergulha não só no psiquismo dos fascistas como também na psicologia masoquista da vítima – o fascínio pelo próprio algoz, pelo seu poder de dispor sobre a vida e a morte.

O filme é cercado por uma aura de maldição e perversão. Durante a exibição do filme no festival de Berlim em 1986, ouviam-se gritos na sala de projeção, enquanto Villaronga era insultado e quase agredido por espectadores.

Sem maniqueísmos

Tras El Cristal não é apenas a narrativa de um sádico e pedófilo médico nazista de campos de concentração fugitivo e exilado em um castelo em algum lugar no interior da Espanha. E como uma antiga criança, vítima das suas perversidades durante a guerra, retorna anos depois para encontrá-lo. E, aparentemente, para vingar-se de todo o mal que sofreu.

Não, isso seria de um maniqueísmo hollywoodiano previsível demais – a vítima procurando o vilão para buscar a vingança.

Villaronga prefere muito mais aprofundar-se no psiquismo da antiga vítima, o jovem chamado Ângelo. Sua chegada à casa do antigo verdugo chamado Klauss, a forma como aos poucos vai envolvendo a esposa e a filha do velho médico nazista, a reminiscência das atrocidades que testemunhou e as sevícias sexuais que sofreu e como aos poucos vai se transformando no próprio espelho de Klauss.

 

Até o ponto de virada no qual a vítima transforma-se também algoz, demonstrando que a questão do Poder não uma simples relação assimétrica entre dominadores e dominados – há uma complexa relação de fascínio pela potência, identificação por aquele que exerce o poder. O Poder como forma alienada do desejo na qual o gozo é experimentado de forma pervertida e mutilada – o desejo alienado que retorna como contemplação e cobiça pelo poderoso – o algoz, o ídolo, a celebridade, aquele que supostamente é mais forte.

Embora as torturas, mortes e crueldades sexuais sejam mais sugeridas pelos cortes e edição do que efetivamente expostas como no filme de Pasolini, Tras El Cristal é tão incômodo quanto. Principalmente porque Villaronga não pretende fazer uma mera descrição da refinada crueldade de Klaus. O diretor quer fazer um estudo da fonte do Mal – a transparência de todo Mal.

O Filme

Tras El Cristal é uma obra plenamente de autor (com roteiro e direção de Villaronga) e sem uma base literária pré-existente – a não ser pesquisas feitas pelo autor na bibliografia sobre os campos de concentração. Isso já é demonstrado desde a primeira sequência que funciona como um prólogo à história que será contada.

Seguem-se primeiros planos alternados do verdugo segurando uma câmera e um menino amarrado e pendurado nu com marcas de escoriações – é uma das poucas cenas mais explícitas do filme, na qual o médico nazi descarrega toda sua crueldade com um golpe com um pedaço de madeira sobre o corpo inerte da vítima.

 

Mas há uma terceira pessoa na cena que resgata uma espécie de diário ilustrado das torturas do médico nazista, enquanto Klaus (Gunter Meisner) tenta suicídio se atirando do alto da torre da masmorra. Talvez nem ele esteja mais suportando suas próprias atrocidades.

Porém, a tentativa de suicídio acabou mal sucedida. Klaus fica paralisado do pescoço para baixo. Junto com sua mulher, Griselda (Marisa Paredes) e a pequena menina chamada Rena (Gisele Echeverria) exilam-se no interior da Espanha em um casarão.

Mas as condições de Klaus pioram ainda mais: ele torna-se incapaz de respirar, o que faz um médico companheiro das suas experiências com crianças nos campos de concentração projetar uma espécie de grande pulmão de ferro dentro do qual ele fica deitado, apenas com a cabeça para fora.

Com a ajuda de uma empregada local, tudo gira em torno da manutenção da vida de Klaus e entretê-lo com leituras – a esposa cada vez mais infeliz e isolada e a filha sem poder ir para a escola.

Até que inesperadamente surge um rapaz chamado Ângelo (David Sust), um bonito jovem e de expressão perpetuamente carrancuda e um olhar perdido. Oferece-se como enfermeiro. Desde o início Griselda suspeita de Ângelo, mas acaba sendo obrigada a aceitar depois que ele tem uma conversa reservada com Klaus.

 

Anjo vingador?

De início o espectador começa a suspeitar que o rapaz tenha algo a ver com os crimes do nazista no passado e que Klaus foi obrigado a aceitá-lo por causa de alguma chantagem – Griselda não sabe dos crimes cometidos pelo seu marido.

Mas tudo muda quando, na primeira noite, Ângelo abre a máquina de respiração artificial para fazer sexo oral que quase acaba asfixiando Klaus. O nome “Ângelo” é sugestivo: será o rapaz um “anjo vingador”, que veio fazer um acerto de contas com o carrasco nazista?

Aos poucos percebemos um perverso jogo de cumplicidade entre os dois: quando criança, Ângelo fora o menino “predileto” das perversões pedófilas de Klaus – além prestar favores sexuais, Ângelo testemunhou as atrozes experiências “científicas” com outras crianças prisioneiras – – como, por exemplo, aplicação de injeções de gasolina no coração.

Klaus tenta se arrepender e esquecer, mas Ângelo passa os dias revivendo as atrocidades de Klaus. E da pior forma possível – sequestra crianças da localidade para, na frente de Klaus, emular as experiências do médico nazi.

As cenas são difíceis de serem descritas nesse espaço (envolvem sevícias sexuais e perversões entre Ângelo e Klaus), mas Villaronga consegue figura-las ao mesmo tempo com franqueza e sutileza. Porém, o mais perturbador é que tudo isso é pontuado pelo sinistro som do fole que funciona em baixo do pulmão de ferro.

Aos poucos Ângelo vai devastando a vida dos familiares e tomando o controle de toda a rotina daquele casarão. Fica claro para o espectador que Ângelo, de vítima no passado, agora quer se tornar o espelho do médico alemão. E transformar aquele casarão numa reprodução de um campo de concentração do passado.

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