Por Alipio DeSousa Filho, Cientista social, professor da UFRN
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos escreveu para o blog brasileiro da editora Boitempo sua “defesa da Venezuela”. Se fosse, de fato, defesa daquele país – que vive, hoje, uma crise humanitária, com fuga em massa de venezuelanos para diversos países vizinhos (calcula-se que a Colômbia receberá mais de 2 milhões de venezuelanos em fuga), em grave crise de abastecimento de alimentos e medicamentos, pessoas a comer lixo pelas ruas, fome, sufocamento de instituições legalmente constituídas como o parlamento, governos provinciais e judiciário, prisões arbitrárias, torturas e estupros nas prisões, e assassinatos de manifestantes opositores do regime ditatorial de Nicolás Maduro –, seu texto deveria ter sido outro: um apelo ao fim da violência contra a gigantesca massa opositora, um apelo humanista contra a opressão, contra as prisões arbitrárias e ilegais, contra o armamento de civis para amedrontar e assassinar aqueles que não se submetem ao regime ditatorial chavista. Todavia, o que se vê na sua “defesa” é uma manifestação de “compreensão” do regime ditatorial que ali se institucionaliza, regime que o sociólogo português insiste em chamar de uma “revolução”, a “revolução bolivariana”, da qual se diz “solidário”.
Mas, como difícil é negar o que está escancaradamente à vista de todos, Boaventura não consegue evitar de mencionar “erros”, existência de uma “crise”, “desacertos” do regime e também parece acreditar que não haverá saída para a “crise venezuelana” se não for pela “via democrática”, para o que, como escreve, poderia contribuir uma “política externa da Europa”, como “uma força moderadora”, como contraponto à política dos EUA, país que não se cobra de ser moderado com ditadores. Aliás, no que os Estados Unidos não estão errados! Como não poderia deixar de fazer, Boaventura credita aos Estados europeus democrático-liberais algum papel de moderação diante da fúria autoritária de Maduro. Por que o faz? Porque o colega português sabe que, nos países europeus, a experiência de governos de orientação liberal democrática (que nada tem a ver com a vaga neoliberal antiestado, reacionária e antidemocrática, que se espalha pelo mundo) é efetivamente a única via para se construir políticas de bem-estar social, justiça social, e pela própria participação democrática sempre mais forçados a alargar direitos, acessos, minorar desigualdades – estas restando ainda como desafios a se enfrentar. Democracias liberais aprofundadas nos países escandinavos e, nos diversos países europeus, EUA e em outras partes do mundo, embora permaneçam contradições, desigualdades e violências, tornaram-se formas políticas que impedem a instalação de ditaduras e ditadores.
Mas, sendo assim, o que faz que Boaventura apoie a ditadura de Maduro? Será ainda a fantasia de certos intelectuais europeus (de “esquerda”) que transferem para a nossa América Latina o sonho de “regimes autenticamente de esquerda” (e sabe-se lá o que isso quer dizer…) porque não veem mais como possível essa “experiência” na velha Europa, porque todos ali sabem bem o que são regimes totalitários de “direita” ou de “esquerda” (viveram a experiência do fascismo, do nazismo e bem de perto os efeitos do stalinismo em parte de seus territórios) e não se entregam mais a ilusões salvacionistas messiânicas e populistas, por confiantes nos Estados democráticos modernos, malgrado tudo ainda que se há de fazer para que, de fato, a democracia seja, cada vez mais, aprofundada e levada às últimas consequências?
Boaventura tem uma obra importante sobre direitos humanos e democracia. Embora sua desconfiança com a retórica dos “direitos humanos” seja justa, principalmente quando se fala disso para levá-los ao “patamar mais baixo de inclusão”, como escreveu, é dele também a afirmação: “a desumanidade e a indignidade humana não perdem tempo a escolher entre as lutas para destruir a aspiração humana de humanidade e de dignidade. O mesmo deve acontecer com todos os que lutam para que tal não aconteça”. Ora, pois, como apoiar um regime que encarcera opositores políticos, elimina física ou psicologicamente adversários, tortura e pratica sevícia sexual em estudantes, artistas, intelectuais e políticos nas prisões e que leva milhões ao êxodo forçado, rebaixando seres humanos a total indignidade, destituindo-os de sua humanidade? O que Boaventura já escreveu sobre esses assuntos não tornaria possível seu inditoso apoio.
O que temos na Venezuela hoje? O fato não é desconhecido de ninguém: logo após a morte de Hugo Chávez – o iniciador do regime autoritário que hoje se instala na Venezuela –, Nicolás Maduro saiu propagandeando que, nas cidades venezuelanas, “o espírito de Chávez estava aparecendo aos trabalhadores em canteiros de obras”. As aparições de Chávez ocorriam, a qualquer hora do dia e em diferentes partes, para a anunciação “da vitória da revolução bolivariana” e, certamente, como um anúncio celestial divino. Tal como, no Portugal de Boaventura, no ano de 1916, a virgem Maria e o Anjo de Portugal “apareceram” aos pastorinhos Jacinta, Lúcia e Francisco, em aldeia pertencente à cidade de Fátima, para lhes comunicar “segredos” a serem posteriormente revelados ao mundo. Fábula que, passando algum tempo, foi recuperada agora pela Igreja Católica para assar no forno da fabricação de seus santos: os pastorinhos foram canonizados em 13 de maio passado.
A patetada de Maduro expressa bem alguns dos fundamentos do poder autoritário na América Latina: messianismo e populismo. Construídos com as tradições indígenas autóctones, tradições africanas e católicas portuguesas e espanholas, nos messianismos e populismos no nosso continente, abundam a criação de entes mítico-imaginários que tanto podem ser os próprios governantes, as “missões” que encarnam ou os “inimigos” que se tornam obstáculos a vencer. E como atestam os muitos exemplos históricos, tanto faz que sejam governantes eleitos, decididos a atuarem conforme as regras do Estado democrático, ou que sejam, como Chávez e Maduro, aqueles que, utilizando-se de eleições, decidem-se a construir ditaduras: recorrentemente, apresentam-se como “pais dos pobres”, “salvadores” da nação, “enviados” da história para “missões” especiais, e, como na estrutura dos mitos e contos de fadas, invariavelmente suas narrativas incluem o enfrentamento de “inimigos” internos e externos. Aliás, uma invariância do discurso ideológico de todos os regimes totalitários. Todos eles, procurando justificar seus atos de repressão e sufocamento de todas as formas de crítica e participação, põem a funcionar máquinas da invenção social dos entes ameaçadores internos e externos.
Na ditadura militar brasileira, a ideologia de segurança nacional também produziu os inimigos internos e externos da nação: os “subversivos” nacionais e o “comunismo” que rondava a cabeça dos militares como um fantasma! Maduro mente ao mundo ao dizer que a crise de abastecimento a que submeteu a Venezuela é um boicote, no âmbito da produção econômica, praticado por “elites brancas e capitalistas” – outro dos entes fantasmáticos do discurso populista e messiânico de certos atores de esquerda na América Latina.
O desabastecimento que leva milhões de venezuelanos à fome e a deixarem o seu país, e, em primeiro lugar, os mais pobres, é produto do fracasso inevitável de um regime autoritário que pretendeu impor aos proprietários, empresários, um modelo econômico que não foi capaz de servir nem mesmo àqueles a quem presumidamente se destinava: os trabalhadores. Mas modelo apresentado com o invólucro de uma “revolução popular”. Repetição de uma história trágica conhecida: na China de Mao, outro ditador implacável, na grande fome dos anos 1958-1961, historiadores estimam entre 20 a 40 milhões o número de pessoas mortas, em razão do desastre econômico do projeto que Mao chamou de “revolução cultural”. Projeto que nenhuma revolução moral ou cultural, de fato, pretendia, como intelectuais europeus acreditaram; “cultural” era a ideia de uma economia artesanal em oposição à via soviética, que Mao considerava “capitalista”, pois apoiada no desenvolvimento técnico-industrial que ele recusava. Mao inventou a fórmula pela qual a “firmeza revolucionária” dispensaria as máquinas do desenvolvimento capitalista, tornando-se a “revolução cultural” uma imensa máquina de propaganda e manipulação psicológica sem precedentes, em prol de uma China “popular”, na qual intelectuais, operários e técnicos eram obrigados a viajar pelo país, segundo as “necessidades” da produção agrícola, todos transformados em “camponeses”, numa “fusão das classes”, e para o que serviram os campos de trabalho forçado… A fome dos chineses fez que a China, naquele período, tivesse que importar toda a produção de arroz da Tailândia, visto o fracasso da chamada “via chinesa”, a revolução autoritária de Mao.
Não há como chamar de “governo democrático” um governo que manipula e frauda eleições para se perpetuar no poder. E que seja lá ou aqui, como vimos recentemente no Brasil. Aqui ou alhures, como em diversos casos. Como dizer que se trata de governo que “nunca deu sinais de não respeitar os resultados eleitorais” (Boaventura) se recentemente mais de 90% da população se manifestou contrária à realização de assembleia constituinte cujo objetivo é dar poderes extremos a um governante autoritário, que só se mantém porque tem as forças armadas – e não o povo – ao seu lado? A verdade dizer, na Venezuela vigora hoje uma ditadura militar, como aquelas que, na América Latina, duraram até metade dos anos 1980. O que se passa hoje na Venezuela atualiza os termos do filósofo Cornelius Castoriadis, ao dizer que, com a institucionalização do stalinismo na Rússia, tivemos o primeiro caso de “sociedade cínica” da história. A Venezuela seguramente não é o “segundo caso”, outros existiram após a Rússia, mas, seguramente, é hoje um caso no mundo de cinismo político. Alguns insistirão em dizer que não se pode falar de ditadura quando “eleições” são realizadas, a imprensa não é “censurada” e que o parlamento continua funcionando…. Bem, não é o que vemos acontecer hoje no país vizinho.
Todavia, desventurado apoio a ditaduras não é coisa nova no currículo de certo setor da esquerda na América Latina. E não fosse isso suficiente há ainda aqueles que, na AL, autoproclamando-se de “esquerda”, manifestam seu apoio ao Estado Islâmico, a Coreia do Norte e manifestaram apoio a Mahmoud Ahmadinejad, quando governante do Irã, por seus arroubos contra os EUA, países e personagens tidos por “aliados na luta contra o imperialismo americano” – outra das figuras retóricas de uma esquerda nostálgica do castrismo e do guevarismo na América Latina. É esse segmento de esquerda que perdeu as condições de diálogo com a sociedade (e aqui, não como ente homogêneo e indecifrável, mas, concretamente, com diversos de seus segmentos, incluindo aqueles aos quais a esquerda acredita que se dirige e imagina que por eles é escutada), que se isola cada vez mais em seu autismo ou esquizofrenia política (dividida entre a socialdemocracia, o keynesianismo e a “ditadura do proletariado” oitocentista), e que, ela mesma, criando o ambiente de sua própria asfixia, vai perdendo o fôlego, ao não saber interagir no ambiente e atmosfera contemporâneas.
Na América Latina, neste século XXI, a esquerda ou demonstra seu compromisso autêntico com a democracia (e sem adjetivos) e comprova seu saber-fazer para a construção de sociedades democráticas, onde impere a liberdade (de todos) e não a opressão (e de ninguém), ou não será!