O ativista social, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e um dos líderes da Frente Povo Sem Medo, Guilherme Boulos, esteve recentemente em Natal. Em entrevista coletiva, Boulos conversou sobre o futuro da esquerda, reformas, governo Temer e a luta por moradia.
Esquerda
“É difícil falar de conjuntura no Brasil, porque daqui a cinco minutos você lê as notícias e a conjuntura já é outra”, brinca. Boulos acredita que o grande desafio posto neste momento de instabilidade política é barrar o programa de destruição nacional do governo Temer. “Esse programa não foi eleito nas urnas. O povo brasileiro não votou em reforma da previdência, reforma trabalhista, em congelamento de investimentos por vinte anos ou terceirização irrestrita. Esse programa foi imposto por um golpe. O papel da esquerda, dos setores populares e democráticos é barrar esse movimento que vai fazer o Brasil voltar 50 anos. Claro que é uma luta de resistência e nós temos depositados nossas energias nisso. Tivemos uma greve geral, talvez a maior da nossa história recente, ato com 150 mil pessoas em Brasília e o conjunto de mobilizações por #ForaTemer e #DiretasJá pelo Brasil”.
Apesar da atuação urgente diantesdessas pautas, para Boulos a esquerda precisa também pensar a longo prazo. “Uma parte dos movimentos sociais e ativistas precisam começar a pensar nesse caminho. Nesses últimos anos, nos governos do Partido dos Trabalhadores, nós tivemos uma política de ‘ganha ganha’. Houve políticas sociais para melhoria de vida das pessoas mais pobres, valorização do salário mínimo, mas isso sem enfrentar nenhum privilégio histórico da Casa Grande, dos donos do Brasil”. Quando ele fala em mexer com privilégios, está se referindo a falta de reforma agrária, urbana, tributária, dívida pública, democratização dos meios de comunicação e a manutenção de um sistema político que funciona a base de corrupção. “Nada disso foi tocado em nome de uma lógica de governabilidade que inviabilizou processos mais ousados de alteração estrutural no Brasil. A esquerda precisa ir além desse modelo, até porque as condições sociais e econômicas atuais do país tornam impossível a repetição disso. Não é mais possível avanço social no Brasil sem enfrentar privilégios”.
Para o ativista, a esquerda precisa propor um programa mais ousado que ofereça mudanças reais nas estruturas do país, já que para ele a chamada Nova República, que veio depois da Ditadura Militar, faliu. “Não podemos ter medo de enfrentar os bancos, promover uma distribuição de renda realmente efetiva. Precisamos tocar certas feridas, sem medo de propor um novo sistema político. Nosso sistema tributário é um dos mais injustos do mundo, é regressivo. Rico não paga imposto no Brasil, quem paga é pobre e classe média. Bancos faturam na crise e pagam merrecas de impostos. A Frente Povo sem Medo tem se desafiado a propor isso e está promovendo uma série de debates sobre o tema”.
O debate está sendo construído junto à diversos movimentos sociais, que defendem uma maior participação da população no sistema político. “Nossa política hoje é escancaradamente voltada para os interesses econômicos e corporativos, e fechada aos interesses populares. Precisamos inverter isso”. Boulos defende que algumas medidas de democratização do estado brasileiro precisam ser decididas por plebiscitos. “A gente não pode achar que democracia é ir de quatro em quatro anos apertar um botão na urna. Por exemplo, para alterar nossa Constituição como foi feito ano passado, de colocar política de austeridade por vinte anos, não pode ser decidido por um Congresso, tem que ter plebiscito, o povo tem que decidir. Para alterar regras da previdência, leis trabalhistas precisa da participação popular. Temos que acabar com privilégios e aproximar os representantes dos representados. É uma crise de representatividade sem precedentes, com as instituições sem credibilidade. A gente tem que ter um controle social maior sobre os poderes. O judiciário é o poder mais autoritário hoje no Brasil. No executivo e legislativo com todos os limites, a cada quatro anos pelo menos, nós temos um pouco de controle. O judiciário é um poder oligárquico, que não presta conta nenhuma para o povo brasileiro e muitas vezes decide por interesses de uma pequena parcela”.
Antipolítica
Após as eleições de 2016, um clima de derrota contagiou a esquerda brasileira, tudo isso puxado pela maior crise já enfrentada pelo Partido dos Trabalhadores. Porém, Boulos acredita que a crise de representatividade é uma onda mundial pela qual as democracias liberais vem passando. “Está em curso um processo de desgaste da política, com isso surge um movimento perigoso de buscar soluções fora da política, um sentimento antipolítica. É um discurso falacioso, porque geralmente quem se define como antipolítico são os políticos mais vigaristas. E esse discurso foi raiz do fascismo lá atrás. Quando surge espaço para pessoas como Dória ou Jair Bolsonaro isso tem a ver com o espaço antipolítico sendo apropriado pela direita”.
Ele destaca também que não é apenas um fenômeno da direita, já que na crise de representatividade as pessoas rejeitam “o que está aí”, o status quo. O que abre espaço para saídas à direita como também à esquerda. “Nos últimos anos na Espanha a gente viu uma crise que gerou o movimento 15M dos indignados em 2011. Desse movimento surgiu dois novos campos políticos: os Ciudadanos como uma nova direita, mas também o “Podemos”, uma dinâmica de nova esquerda. Que conseguiu canalizar esse sentimento antipolítico para um programa de de aprofundamento democrático. Então, a esquerda não pode se associar ao status quo. Não pode se colocar como a salvadora de um sistema político falido. Precisa ter coragem de criar um programa contra hegemônico para disputar essa insatisfação generalizada. E se não tiver diálogo com essa insatisfação, ela vai de bandeja para figuras como Bolsonaro”.
Nos últimos vinte anos a esquerda brasileira perdeu a conexão com suas bases populares e perdeu a capacidade fazer o trabalho de base com os trabalhadores e a maioria da população. “Não existe espaço vazio. Se a esquerda deixou de ocupar, de ter diálogo e vínculo social, de ouvir demanda e propor soluções, esse espaço passa a ser ocupado por outros setores. Hoje nas periferias são igrejas pentecostais e neo pentecostais, muitas vezes com um discurso conservador, que atendem essa demanda. É onde também a direita surfa”.
Reformas
Boulos chama a emenda constitucional do teto dos gastos de “desconstituinte”. Para ele, o que a Constituição de 88 tinha de mais progressivo, que seria uma rede de proteção social com garantia de serviços públicos universais de saúde e educação, mesmo com suas limitações, será liquidado. “Nós precisamos derrubar isso na rua, porque se de fato isso for aplicado, o SUS não durará mais cinco anos, nossa educação será privatizada e nos preparemos para o esgotamento de todo o programa social. É matematicamente impossível você assegurar programas sociais e serviços públicos universais com um orçamento congelado relativo ao ano de 2016”.
Boulos ressalta também, que assim como a Reforma da Previdência tem o objetivo de acabar com a previdência pública para fortalecer os fundos de pensão, os bancos e a previdência privada, a PEC do teto dos gastos irá sucatear os serviços públicos para fazer o que Fernando Henrique fez na década de 90 com as privatizações. “Vão sucatear ainda mais os serviços de saúde e educação, a ponto de aproveitarem isso num clamor social pela privatização, apresentando como uma solução. Esse é o programa deles. É um crime de lesa-pátria, quem aprovou isso aí cometeu um crime contra o país, contra o povo brasileiro”.
Qualquer programa político democrático que se apresente precisa revogar essas medidas tomadas por Michel Temer, de acordo com o ativista. “Essa PEC é o maior atentado à democracia política do país desde a ditadura militar. Porque um governo que não foi eleito pelas urnas, decidiu a política econômica dos próximos quatro governos que venham a ser eleitos. A gente pode eleger o Lênin nas próximas eleições, mas se ele não tiver 3/5 do congresso para revogar, ele não governará, estará amarrado. Não poderá fazer política social. Isso é um atentado brutal a soberania do voto popular”.
Moradia
Apesar do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) não estar presente na capital potiguar, Boulos aponta alguns problemas gerais como o desemprego que agravam o problema de pessoas sem moradia. “O que a gente vê aqui em Natal não é muito diferente do resto do país e principalmente das capitais do Nordeste, é uma realidade de muita segregação. Vindo do aeroporto para cá, eu pude perceber que da ponta para lá é uma cidade e aqui parece outra. Isso está associado ao processo de especulação imobiliária que expulsa as pessoas mais pobres para a periferia”. Ele afirma que nos últimos anos essa situação piorou com o aquecimento do setor imobiliário e o aquecimento da construção civil. “Em seis anos os preços de imóveis cresceu 150% de acordo com o índice Fipezap. Terra passou a valer ouro. Isso expulsa, porque nessa lógica de cidade, valorização significa que, quem não pode tá fora”.
Boulos também lembra que boa parte dos trabalhadores mais pobres não tem casa própria, com a perda do emprego eles não conseguem mais pagar aluguel e o número de pessoas sem teto aumenta. “Isso gera um barril de pólvora, uma pressão natural por ocupações. As ocupações não são resultados da vontade das pessoas e sim da falta de oportunidade de ter moradia de outra forma”.
Uma saída apontada por Boulos para que um gestor público consiga minimizar o problema seria enfrentar a lógica do capital imobiliário. “Não é preciso muito, basta aplicar a lei. O Estatuto das Cidades prevê uma série de mecanismos de enfrentamento à especulação imobiliária e de garantia da condição social da terra, que asseguraria uma dinâmica urbana mais justa. Como o IPTU progressivo, a desapropriação sanção, planos urbanísticos que fortaleçam a construção de infraestrutura e serviços públicos nas zonas periféricas”.