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A cultura histórica em perigo: a reforma do Ensino Médio, o ensino de história e o direito ao passado

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A reforma do Ensino Médio, o ensino de história e o direito ao passado

Por Diego José Fernandes Freire (Professor de história)

A lei 13. 415/2017, ao estabelecer uma reforma curricular e organizacional do Ensino Médio brasileiro, suscita importantes questões acerca da situação das disciplinas que não foram colocadas como obrigatórias durante todo o processo final da Educação Básica. Com a centralidade dada a português, matemática, inglês e artes, o que acontecerá com matérias como história, geografia, física, química, biologia, entre outras? Que efeitos o “novo Ensino Médio” provocará nessas disciplinas escolar? Como os seus conteúdos serão trabalhados? Como se vê, muitas questões podem ser colocadas.

No próprio texto da lei, podem-se encontrar algumas respostas. Segundo o documento, as disciplinas não obrigatórias serão mantidas na primeira metade do Ensino Médio, ocasião em que o aluno fará uma escolarização comum entre todos os estudantes do país, conforme prevê a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), documento ainda em elaboração. Em seguida, na fase final do Ensino Médio, elas serão cursadas apenas por aqueles alunos e alunas que optarem por um itinerário formativo que contenha tais disciplinas. Daí se falar em flexibilização do currículo, isto é, o estudante flexibiliza o currículo conforme suas intenções e aptidões. Com esse desenho curricular, história, geografia, física etc. deixarão de ser ensinadas a todos os alunos durante todo o Ensino Médio, conforme acontece atualmente. O ensino de tais matérias está assegurado para todos os discentes apenas na primeira metade deste nível escolar. Segundo o espírito da lei, caberá ao estudante escolher se quer ou não continuar estudando tais e tais matérias, excetuando aquelas obrigatórias.

Elegendo a situação da disciplina escolar história, objetiva-se conjecturar a respeito de um efeito que a arquitetura curricular rabiscada acima poderá vir a desencadear a médio e longo prazo na sociedade brasileira. Para além da diminuição das aulas de história, e da provável redução dos postos de trabalho daí decorrente, que outras consequências podem ser apontadas? Que impactos a reforma do Ensino Médio poderá desencadear no cenário social e cultural brasileiro?

Toda sociedade apresenta para os seus partícipes diferentes formas de “acessar” o passado, o que faz com que este não seja uma temporalidade distante e longínqua, ausente dos indivíduos. Ao contrário, o passado se presentifica de diferentes maneiras, e com várias facetas, conforme os variados mecanismos sociais. Dai se dizer que o passado não é algo morto, mas sim vivo. Dessa presença do passado na vida das pessoas, resulta a formação de valores, anseios, visões e práticas a respeito do mundo pretérito, configurando uma dada cultura histórica. Este conceito, em linhas gerais, aponta para a maneira como os indivíduos se relacionam com o passado, construindo para si determinadas experiências temporais. É justamente nesse ponto que o dito novo Ensino Médio pode gerar decisivas mudanças sociais e culturais.

A redução das aulas de história na Educação Básica pode gerar na sociedade brasileira um empobrecimento da cultura histórica, isto é, uma limitação na própria experiência temporal dos indivíduos, na medida em que a história escolar é um dos principais responsáveis pelas narrativas e visões acerca do passado. O ensino de história para crianças e adolescentes é uma espécie de “porta de entrada” para um trabalho cognitivo mais elaborado a respeito da experiência humana ao longo do tempo. Ele auxilia na maneira como os indivíduos se relacionam com as realidades pretéritas, de modo que sua redução afeta não só os conhecimentos sobre o passado, como a própria maneira de enxergá-lo.

O ensino escolar da história ainda é, na nossa sociedade, o lugar principal em que o passado é apre(e)ndido, problematizado e criticado. É em tal universo que um raciocínio científico sobre as sociedades humanas no tempo encontra um lugar privilegiado, alimentando não só uma vontade de saber, como também uma postura ética, em pró da tolerância social e cultural. O exercício de estranhamento da nossa própria condição, daquilo que somos em termos sociais e políticos, base de um ethos democrático, tolerante e multicultural, é uma exigência basilar do ensino escolar de história, conforme recomenda os Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Básica. Reformulando tal ensino, reformula-se igualmente o relacionamento social com o passado, ampliando e/ou reduzindo dadas experiências temporais.

Reduzidas as possibilidades de aprendizado do passado no espaço escolar, a cultura histórica se empobrece, ficando a mercê de leituras e apropriações politizantes, midiáticas e simplificadoras. Nesse sentido, ficará aberto o espaço (o mercado?) para uma maior penetração dos youtubers que falam sobre a história à sua maneira, para as series e filmes que glamourizam o passado e para os grupos políticos que constroem suas versões parciais sobre o passado. Não que a história escolar seja uma apropriação do passado superior ou melhor do que as demais, ou que ela esteja isenta de interesses políticos e sociais. Longe disso: trata-se de ressaltar que a história, enquanto disciplina escolar, ao proporcionar uma forte interação entre aluno e professor, ao se pautar pela ciência pedagógica e historiográfica, ao situar-se dentro de uma comunidade escolar, tem as “munições” necessárias para uma visão reflexiva do passado.

Desse modo, a cultura histórica poderá ser duramente golpeada, perdendo em nível analítico e crítico, o que trará à tona um passado não problematizado, acrítico e pronto, espécie de produto a ser saboreado conforme os gostos de cada consumidor, ou a ser manuseado de acordo com os mais distintos e perigosos interesses. Fecundar a partir do passado uma postura de questionamento ao presente e de projeto de futuro não é uma tarefa simples, que pode ser desempenhada por qualquer pessoa em qualquer lugar. Fazer o passado significativo para o presente, transformá-lo em algo que faça sentido aos vivos, requer um trabalho reflexivo e metódico para qual o diálogo proporcionado pela história escolar muito contribui. Reduzir esse diálogo é, igualmente, limitar as experiências temporais entre passado, presente e futuro, tornando-as menos críticas.

Assim, pode-se assinalar que os efeitos da reforma do Ensino Médio podem ir além da seara escolar e profissional. Tal reforma parece limitar o próprio direito ao passado, reservado a todo e qualquer indivíduo, notadamente aos estudantes em formação escolar básica. No momento em que estes estão mais maduros e prestes a ingressar na vida adulta, na ocasião em que uma visão de mundo mais consistente tem condições de ser edificada, reduz-se seu direito ao passado, do mesmo modo que se abrevia seus direitos de aprendizagem. Um Estado democrático não deveria proporcionar para os seus cidadãos situações de efetivo aprendizado histórico? Como fica o direito ao passado, quando uma escola pública não tem nenhuma obrigatoriedade de fornecer aulas de história para seus alunos concluintes do Ensino Médio? Limitação de direitos, talvez seja esse o maior risco do “novo Ensino Médio”.

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Texto elaborado a partir da mesa redonda “Os impactos da Reforma do ensino médio na Educação Básica”, realizada pelo Centro Acadêmico de Pedagogia da Universidade Potiguar (UnP).