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A Síndrome do cabresto ideológico

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Por Félix Maranganha
Convidado para a Série “Da Correção Política à Censura”

Do Calango Abstrato – Segunda-feira eu, o professor de Metafísica e mais dois alunos fomos surpreendidos por um aluno/colega. Estávamos nos já costumeiros problemas gerados pelas salas de registro cruzado, e, esperando mais gente da turma aparecer. Sentamos no batente eu, o professor e outros dois alunos, e começamos a discutir sobre a necessidade ou não de uma Ciência das Religiões. Eu defendia a ciência como uma área de estudos com um corpus muito bem delimitado, desde que nenhum pesquisador puxasse a sardinha para o próprio prato, e os demais repudiavam a existência de uma ciência autônoma com esse nome. Até aí, nenhum problema, apenas um debate normal, saudável e tranquilo. Não deixarei de pesquisar religiões por causa disso, e nem eles deixarão de estudar filosofia por causa disso.

Durante a aula de Metafísica, começamos a discutir questões como a noção da nova humanidade de Habermas, questões relativas ao fim da espécie humana, ética e liberdade no mundo contemporâneo (citando casos de pedofilia na Igreja), a superação das quatro escolas pós-metafísicas, a noção de Mundo da Vida em Husserl, o pensamento sistêmico em contraposição ao pensamento reducionista cartesiano etc. Enfim, uma aula normal de Metafísica como qualquer outra. Do meio para o fim da aula, um dos colegas, cujo nome não lembro (aliás, só sei do nome do professor dos que estavam presentes, e vagamente o nome de um outro colega), levantou-se e começou a nos acusar de ateísmo, dizendo que não tínhamos Deus no coração, que tínhamos de confiar na misericórdia do Todo-Poderoso, e que a Metafísica tinha como compromisso provar a existência de Deus, e que um indivíduo que estude Metafísica, se ainda não teve o Ser Absoluto em seu coração, demonstrava sua desonestidade com o pensamento. Esbocei um sorriso, afinal, foi inusitado, não esperava aquilo. Em seguida ao meu sorriso ele foi agressivo, falou aos berros, olhou de forma acusadora para os presentes (ele me olhou tanto que acho que ele falou mais comigo que com a turma por causa do meu sorriso). Saiu da sala bufando, quase tropeçando no meio-fio da Central de Aulas. Eu, o professor e meus outros dois colegas ficamos em choque. Lembro apenas de ter dito, ainda sorrindo: “Que porra foi isso?”

O problema da Academia

Apesar de ter narrado um fato específico, esse problema não é um caso isolado. Já presenciei outros, em outros cursos. Lembro ainda do aluno que ameaçou o professor de Letras com o “fogo do inferno” caso ele continuasse no ateísmo. Ainda lembro, como se fosse hoje, do caso oposto, em que um aluno neoateísta pôs o professor de Bioquímica na justiça somente porque no Orkut dele vinha dizendo “Espírita” (seus argumentos? Todo professor universitário tem a obrigação de ser ateu). Não consigo esquecer da minha aula em Letras, anos atrás, quando usei um slide com a Vênus de Botticelli e um aluno me acusou de “perpetuar o discurso machista burguês dentro da academia“. Um caso engraçado foi já agora no curso de Filosofia, em que um dos alunos, durante as aulas de Filosofia Medieval, diante da informação de que o cânon bíblico foi construído de forma arbitrária pelas diversas igrejas, levantou-se e começou a orar em línguas, logo depois dizendo que isso provava que Deus existia e que a Bíblia que tinha era a correta. A resposta do professor de Medieval foi: “essa foi uma experiência a que só você aqui teve acesso, e isso não serve de prova para nada“. Para não cansar o leitor, omiti outros casos e trouxe aqui apenas os mais relevantes, pois se fôssemos citar tudo, vocês veriam uma coleção de absurdos, desde pedidos de casamento poligâmico mórmon durante a aula de Botânica até aluno citando letra da Madona para derrubar argumento de professor em aula de Metafísica.

Antes essas coisas eram mais esporádicas, mas parece que estão se tornando cada vez mais comuns na academia. Antigamente, uma discussão dessas ficava para uma mesa de bar, um banco de praça, os corredores de uma igreja… No passado era mais compreensível que um aluno surtasse e fizesse ou dissesse uma merda das grandes. Seria motivo de piada por alguns meses, ou anos, e depois viraria figura folclórica do curso (dos meus tempos de Farmácia e Letras sobraram muitos desses). Hoje, esses surtos estão ficando frequentes. Crises existenciais, manifestos políticos, surtos neuróticos, exposição da vida pessoal, ameaça de sanções, divulgação ideológica, gente buscando Deus, cada episódio desses que presencio me deixa preocupado e pensativo, e me faz pensar que talvez nossa sociedade e nossa massa intelectual estejam vivendo uma espécie de Síndrome.

Síndrome do Cabresto Ideológico

Uma coisa que aprendi com um tio-avô, no interior, quando trabalhava como vaqueiro, foi o uso das cordas. Me ensinando a fazer um cabresto, ele disse: olha a corda de uma ponta e me diga se consegue ver a outra ponta. Não conseguia, obviamente. Me pediu o mesmo exercício com a outra ponta. Logo depois, ele colocou o dedo no meio da corda e pediu para eu realizar o mesmo exercício, e pude visualizar o local indicado. Claro que a aula era para indicar o melhor lugar da corda onde se fazer o nó do cabresto, mas entendi a lição. Se eu me posicionar num extremo da corda, enxergarei todo o resto da corda como um outro extremo. Você não conseguirá ver o outro extremo de fato, e talvez nem consiga conceber o outro extremo, mas tudo o que não for o seu extremo é o outro extremo. Os posicionamentos moderados, os meios-termos, os centrismos acabam todos sendo vistos como um extremo a ser combatido.

É o que ocorreu nos episódios que citei. Cada um dos envolvidos abraçava um extremo, fosse esse extremo a religião, a falta de religião, o ativismo de esquerda ou o conservadorismo de direita, ou quando os mesmos perdiam totalmente a noção da finalidade do espaço em que se encontravam para promover suas merdas pessoais. Muitas vezes os mesmos alunos acusavam professores de coisas esquisitas: já vi evangélico ser acusado de ateísmo, padres carmelitas serem acusados de heresia, ateus serem acusados de teísmo, e isso somente porque não colocavam suas ideologias pessoais em sala de aula, ou adotando uma postura de respeito e compreensão do diferente.

Enfim, fica o aviso: estamos entrando em uma geração extremista e agressiva, e desejo sorte aos professores que se responsabilizarão de ensiná-la. Está em crise existencial? Reze em casa. Quer fazer um manifesto político? Faça-o em lugar de circulação pública. É neurótico? Procure um psicólogo, um N/A, um psicanalista ou um psiquiatra. Tem problemas na vida pessoal? Resolva-os no âmbito pessoal. Quer processar alguém? Fundamente-se na Lei e procure um advogado. Quer divulgar sua ideologia? Aja mais e fale menos. Quer encontrar Deus? Entre num mosteiro. Quer ser um sábio? Comece não buscando conhecimento. Se todos começassem a pensar assim, episódios perolares da academia seriam evitados.

 

Entenda a Série: Da Correção Política à Censura

 

Félix Maranganha é filósofo, budista, sinuquista e fãde pimenta. É autor do blog O Calango Abstrato.