Search
Close this search box.

Politicamente incorretos ou do riso perverso

Compartilhar conteúdo:

Especial para a Série “Da Correção Política à Censura”


O homem não é, entre os seres da terra, o único capaz de rir. No entanto, defende o filósofo Henri Bergson, é o único “animal que faz rir”. Mas que significa o riso? Qual o seu papel na vida social? O mesmo filósofo dizia que o riso funciona como a válvula de escape contra os automatismos sociais e o peso fixista da vida em sociedade. Ele reestabeleceria o fluxo da vida, instalaria, por alguns segundos ou minutos, a descontinuidade no seio da inflexibilidade das normas e convenções responsáveis pelo sentido de ordem. O riso, o humor, existe pra evitar que a rigidez e o automatismo inerentes à sociedade sufoquem por completo a vida. Em certo sentido, o humor tornaria a vida em sociedade possível ao oxigená-la, eis a lição de Henri Bergson; pois por meio dele obtém-se o relaxamento das disposições, a maleabilidade e o atenuamento das sanções e pressões sociais e culturais sobre a vida, os indivíduos e a imaginação, permitindo a estas fruir.

Talvez a maioria dos humoristas do ‘stand-up comedy’ jamais tenham lido Bergson, contudo, certamente, concordariam com suas ideias sobre a função do cômico. Mais ainda; creio, inclusive, que eles diriam praticar tais ideias. E, que seu objetivo como comediantes não seria outra coisa senão oxigenar uma sociedade tomada pela fixidez mecânica da chamada “ditadura do politicamente correto”. Desentranhar o riso e o cômico suprimidos pela caretice e pelo excesso de política. Uma sociedade politicamente correta é uma sociedade que não sabe rir de si mesma, talvez dissesse, num momento de inspiração filosófica, Rafinha Bastos. A piada contra a austeridade das causas sociais dos movimentos militantes. O humor contra a política.

Desse ponto de vista, não seria o mal-estar e a revolta gerados por uma sociedade de normas e convenções sufocantes, “politicamente corretas”, a raiz das recentes polêmicas envolvendo os programas e shows do ‘stand-up comedy’ no Brasil? Particularmente, não creio.

Antes de se perguntar o porque de se insistir em piadas que comparam negros à macacos ou que estuprar mulher feia é um favor prestado, convém antes colocar a seguinte indagação: para quem de fato se dirige o humor dos comediantes “politicamente incorretos”? Ao contrário do que gostariam de nos fazer acreditar, seu humor não se destina a suavizar o peso asfixiante da nova “jaula de ferro”, supostamente erguida pelos movimentos sociais das minorias e chatos politizados de esquerda. Como acertadamente observou Walter Hupsell, colunista do sítio Yahoo, a trupe do Rafinha Bastos e companhia fazem um humor para si mesmos. Ou seja, um humor profunda e desmensuradamente narcisista.

Sua ojeriza caricata contra o “politicamente correto” se deve precisamente ao fato das injunções normativas associadas a este os atingir no âmago de seu narcisismo. Mas que narcisismo é este de que falamos? Ele consiste, no caso dos humoristas “politicamente incorretos”, em sua crença absoluta no poder e charme irresistível de sua liberdade e criatividade individuais. Seu humor e piadas são a expressão máxima e a tradução perfeita da afirmação de suas individualidades altamente singulares. Em razão dessa crença e do culto narcísico de sua própria personalidade, adorada por seus poderes carismáticos e singulares, julgam-se acima do Bem e do Mal. Contra homens extraordinários e originais não podem pesar limites sociais gregários. Afinal, estes últimos destinam-se para os medíocres sem graça, e não para os “espíritos livres e leves”.

No fundo, é essa compreensão mistificada e narcísica sobre si, a crença e o culto de uma personalidade fantástica e extraordinária, com a qual somente uns poucos eleitos e talentosos seriam agraciados, o que instila a impressão autorizada de que podem “brincar e se divertir” com estigmatizações, preconceitos e estereótipos. Que importa seus efeitos ou significados dolorosos na história e experiência diária das pessoas? Um humor ávido por chocar e ofender e cujo fermento de sua comicidade, de onde espera retirar os risos e as gargalhadas do público, repousa no lodaçal dos preconceitos e racismos, não é apenas insensível, mas, sim, uma forma de humor perversa que goza com o sofrimento, o desrespeito e a miséria do outro.

Dito de outro modo, essa forma de humor dita “politicamente incorreta” converte-se ela própria num exercício legitimado e velado de intolerância, de rebaixamento e de reforço da estigmatização de grupos e classes de pessoas já, histórica e culturalmente, discriminados e marcados como tais por razões étnicas, sexuais, geográficas, classe, etc..

Mesmo cobertas pela sutiliza do humor e das piadas, é importante não naturalizar atitudes e manifestações preconceituosas de inferiorização e desrespeito sob pena de perdemos de vista importantes distinções e parâmetros. Talvez seja justamente aí, na confusão das distinções e parâmetros, que o cinismo contemporâneo, do qual, a meu ver, essa forma de humor politicamente incorreto à brasileira é filho, age.

Na ironização total, o poder e a dominação passam a rir de si mesmos.  Tão logo adentre na ironia total, tudo resulta em banalidade e indiferença. A quem interessa fomentar esse tipo de riso e humor? Em que ele pode contribuir? Em piadas encharcadas no lamaçal dos preconceitos, há apenas um riso desumanizador, prenhe de crueldades e perversão.

Numa sociedade em que cada vez mais os preconceitos e as formas de estigmatização são combatidos no plano do Direito e, mesmo, no cotidiano, não seria justamente no campo do humor, do riso, o lugar onde os microfascismos, a intolerância e a vontade de oprimir e humilhar encontraram um lugar legítimo e sutil para se manifestar e se exercer? Não seria no riso, no humor, onde agora descarrega-se os preconceitos, usando minorias e os grupos estigmatizados para aliviar o que, na esfera pública formal, foi, em grande parte, cerceado normativa e socialmente? Nesse sentido, o humor “Proibidão” dos “politicamente incorretos” não seria uma válvula de escape para a fruição da vida, mas para a vazão dos fascismos e dos preconceitos realmente existentes.

 

Entenda a Série: Da Correção Política à Censura