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A maçã de Adão

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Por que querer ser outra coisa[1]

Quando você é Mick Jagger?

(Keith Richards)                                             

I

 

BEEEP.

BEEEP.

-Ok, 1…2….3…fazendo o registro.

Eu sempre gostava de escutar histórias do meu avô. E ele era do tipo que colecionava muitas. “Ah, mas antigamente não era assim. Hoje, o mundo está perdido”. Gostava de se gabar num continuo de afirmação, como sempre diz todos os avôs, olhando para trás. “São esses malditos viciados, que estão acabando com tudo”. “Olhe. Olhe aqui meu rapazinho. Tudo o que um homem precisa é disso”, mostrou-me uma Smith & Wesson, um modelo 38, de uns duzentos anos atrás, que hoje a gente só encontra num antiquário.

Há uma explosão, quando se puxa o gatilho, (local onde se colocava o dedo) que faz com que um projétil de aço (que levava o nome de bala) saia dali e atinja o seu alvo (e acreditem isso ainda pode matar um homem!). E em cada tiro deflagrado, uma peça chamada tambor, roda, e coloca outra bala em posição de ser deflagrada. E foi muito divertido quando o meu avô me ensinou tudo sobre revólveres ao atirar. Eu tinha uns nove anos.

Meu avô morreu em uma brincadeira tola que ele aprendeu no  século XXI – Chamava-se roleta russa.  Você tem uma chance em cinco (ou seis, dependendo do revólver) de sair com vida, depois que coloca a bala no tambor e o faz girar e aperta o gatilho. É mais ou menos o que estou fazendo agora. E ainda tenho cinco chances.

Click!

Foi logo depois que a Megacorp quebrou, e muitos dos que tinham pequenos investimentos ali viram da noite para o dia suas garantias virarem pó, que meu avô se matou.

É. Eu sei. É o típico de brincadeira estúpida. Mas a vida é assim. Às vezes fazemos coisas estúpidas. Como dois adolescentes usando STAM. Eu tive uma linda menina uma vez.  Ela morreu carbonizada. Brincou com fogo. E acho que tenho alguma parcela de culpa nisso.

Obviamente eu poderia recodificar minhas células em alguma clínica especializada, ou ter algum chip inibidor implantado em meu cérebro, ou ainda mesmo ter minhas recordações apagadas, para livrar-me do remorso. Mas não tenho créditos para isso. O vício me levou tudo. Menos o Smith & Wesson.

Click!

Quatro chances.

Meu psiquiatra – num modelo rústico de cura- disse que eu deveria tentar registrar minhas angústias. Colocar pra fora. E é o que também estou tentando fazer agora. Antes que os miolos me saiam da cabeça, ao invés das ideias.

O governo oferece um programa para viciados. Um tratamento antiquado num espaço sujo e precário chamado de clínicas de reabilitação terapêuticas. Vovô, que achava esse mundo um lixo, gostaria de saber o que ele iria dizer sobre isso. Penso inclusive que ele aprovaria a minha fuga à moda antiga, uma semana antes de começar o tratamento nessas clínicas.

Dados de órgãos internacionais de saúde revelam que 25% da população mundial são de viciados. E desses 25%, 20 são viciados em STAN. Números estatísticos quase sempre tem algo de abstrato; parecendo algo muito longe de nossa realidade. Mas só para você ter uma ideia, de cada dez amigos, ou parentes seus, dois são, ou serão, viciados em STAN.

O governo (como sempre) faz pouco para intervir nessa situação. Todo mundo já está cansado de transar com hologramas. Além do mais, essa possibilidade de fuga deixa os ânimos um pouco menos acirrados. Evitando, assim, o que poderia ser uma 4º guerra mundial.

Os viciados em STAN ( dessas que são vendidas pelas ruas) têm uma vida média de dois anos. Foi forma a forma barata e eficaz que o governo encontrou de erradicar a pobreza.

Esse registro deveria ser sobre algo a respeito da minha vida. Mas, como todo viciado, sempre tenho que falar também da Maçã de Adão. Era assim como a gente se referia a STAN lá na divisão de narcóticos ultraespeciais. Isso foi antes de eu ser expulso. Mas para um viciado, não há vida sem droga. No meu caso, não há vida sem STAN.

Click! Três chances

– Estou com sorte.

II

O que se falava por lá no Departamento era que o negócio tinha sido criado pelas corporações e governo para as explorações nas viagens espaciais; para que nossos astronautas enfrentassem as intempéries de longas distâncias (centenas de anos-luz) e de gravidades extremas. Criaríamos assim os super-homens. Para mim isso tem outro nome. Soldados.

O que se sabe é que um dos astronautas, uma das primeiras cobaias no teste, assassinou toda a tripulação e destruiu a estação espacial, jogando milhões no lixo. E desapareceu.

A droga age como uma super-estamina (daí o apelido esperto que lhe deram nas ruas, STAN) sintética no corpo, de efeitos psicossomáticos. Além de uma reação alérgica às primeiras doses, ninguém desenvolve os mesmos dons. É como os super- heróis que havia nas hq´s do século XX. (Eu nunca gostei muito do tipo. Preferia histórias de detetives. Como Philip Marlowe, que meu avô me contava. Acho que por isso eu decidi entrar para a polícia). Há os que gravitam, os que adquirem força sobre-humana, os que leem pensamentos…

Provando A maçã de Adão, todo mundo achava que seria como Deus. Mas era por poucas horas. Porque o efeito é rápido, podendo causar inclusive a loucura, como aconteceu ao nosso amigo astronauta.

Um dos envolvidos no projeto, da equipe dos cientistas, levou a droga para as ruas, e logo se tornou um traficante milionário. E como todo traficante milionário, inseriu tantos aditivos quanto possível, barateando o custo e mantendo a sua clientela fiel e voraz ( com até uma dose) na maioria dos casos.

O negócio se espalhou. Criou seus defensores e gurus. E das periferias, tomou conta do show business. A ponto de algumas celebridades admitirem publicamente que já fizeram, ou faziam uso, da STAM.

O publico estava maravilhado, como também apavorado. Então vieram os crimes. Daí criaram O departamento. A divisão da polícia, especializadas em crimes relacionados à STAN.

Mais do que resolver os casos, O departamento era apenas um resposta midiática do governo a população, como só descobri tempos depois.

Muitos advogados, promotores, Juízes, presidentes e acionista de grandes corporações, que não eram viciados, ganhavam alguma coisa com a manutenção do negócio. A pena, em muitos casos era branda, ou se fazia vista grossa.

Mais ou menos nessa época, quando começaram a vir esses questionamentos a minha cabeça, nós do Departamento estávamos no encalço de um traficante e usuário de STAN chamado Retalhador.

Depois muitos meses, conseguimos prende-lo. Só para, minutos depois, depois de algumas ligações, o  vermos na rua. Ele jurou que ia me pegar.

Não levei aquilo muito em consideração. Afinal, ouvia coisas do tipo todos os dias.

Engraçado, a origem dos apelidos. No geral é para denotar alguma coisa de engraçado, uma característica ou até mesmo um defeito. Na condução para minha casa, à noite, perguntei-me “Por que Retalhador?”

No chão, próximo à entrada da minha garagem, havia uma caixa, com o indicativo do meu nome.

Passei um Scan, fazendo uma varredura no conteúdo da caixa, pensando ser uma bomba. Antes fosse.

O Scan não identificou nada de eletrônico ou digital. Mas tecidos. Tecidos humanos. Daí foi que entendi o porquê de Retalhador.

Seu dom, através do uso da STAN, era transformar as extremidades do corpo, como os dedos de suas mãos, em navalhas.

Naquela caixa de 40×20, só poderia ser duas coisas. Ou minha esposa, ou minha filha.

Click!

Duas chances.

Nossa, porque não apostei hoje?

III

Eu nunca mais me recuperaria daquilo. Mudei-me, junto com a minha filha para outra lugar. Obviamente ela me culpava pelo que havia acontecido com a sua mãe. Tanto quanto eu.

No Departamento foi que conheci a STAN. Havia um dos nossos, que fazia o uso da substância, que me apresentou a ela.

No início relutei, mas o meu amigo disse que aquilo seria bom para “aliviar” a dor.

Passei então a ser considerado louco, pelos meus colegas. O que mais se arriscava. Eu havia descoberto o meu “dom”, que era ter um corpo que se recuperava rapidamente, tão logo fosse atingido por qualquer coisa.

Ah, eu matei o meu amigo. O que me apresentou a STAN.

Sempre me perguntei como o Retalhador havia descoberto o meu endereço, mesmo usando um embaralhador para decodifica-lo. Eu fiz essa pergunta ao meu parceiro, que mudou de cor. Ficou verde. Isso podia funcionar para alguns animais quando ainda havia ainda florestas abundantes. Mas não hoje. Peguei também o Retalhador. Tempos depois.

Cada recuperação do meu processo de cura era dolorosa. Mas isso não importava mais. Buscava o flagelo, tanto quanto me via cada vez mais afundado na STAN. O departamento, apesar de me ter como um ótimo agente, não poderia ficar comigo naquelas condições. Então fui demitido. Tornei-me detetive particular, como o Philip Marlowe, e, às vezes, os caras do Departamento me procuram. Me dão algum bico pra eu resolver. (Quando eles não conseguem)

Minha convivência com minha filha, a medida que ela crescia, havia ficado insuportável. Ressentimentos e mágoas sempre jogados na minha cara. Sem contar a história do vício...

Um dia ela saiu de casa para uma festa punk com alguns amigos. Eles iam usar STAN, pela primeira vez.

Quando se usa STAN pela primeira vez é sempre bom ter um piloto próximo, por segurança. É como chamamos a pessoa que pode ajudar; na falta do controle. Sem isso essa experiência pode se tornar uma espécie de roleta russa. Acho que está no sangue.

A minha filha não usou, apenas o namorado. Teria sido até prudente de sua parte, se  logo que o namorado tivesse usado, não estivesse no meio de suas pernas.

Não passou mais do que alguns segundos para que o idiota entrasse em chamas. E ela com ele….

-Click!

-Click!

-Click!

Engraçado, pensei que esse revólver estivesse carre…………….

 

BANG!!!

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IV

BEEEP.

BEEEP.

-Ok, 1…2….3…fazendo o registro.

 

Não. Você não esteve enganado. Eu morri. Ou estive tecnicamente morto. Por algumas horas. Havia sim uma bala no meu revólver, que, por algum motivo que ainda não sei, ficou emperrada. Apesar do reparo, e da manutenção que faço, duzentos anos não são duzentos dias. Engraçado que meu avô, que viveu 120 anos, e pagou uma pequena fortuna ( quando havia ganho algum dinheiro com ações) em complexos processos de reprodução de órgãos e pele sintética, a fim de prolongar seus dias de vida –  tenha tirado  a própria vida.

Morrer é como se estivéssemos assistindo a um programa, e de repente, aquela imagem ao qual assistíamos é interrompida, e só nos sobra à escuridão. Sem sonhos. Sem recordações. Porque não há mais nenhum estímulo, nenhuma ligação para nos enviar essas mensagens.

Eu tive uma bala que me atravessou a cabeça e lançou meus miolos ao chão. E que se não fosse pelo meu “dom” regenerativo, não estaria aqui, agora, fazendo esse registro.

Eu senti cada gota de sangue espalhado coagular novamente no espaço, depois diluir-se numa unidade- Como um copo, caído ao chão, cada estilhaço se juntasse e voltasse a ser um copo.

Eu senti cada fio de meu cabelo chamuscado de pólvora, voltar até os ossos pulverizados de meu crânio. Cada centímetro de substância branca e cinzenta. Cada gordura de massa encefálica, a ramificação de seus vasos, o restabelecimento das sinapses lançando suas cargas elétricas entre meus nervos, e por fim, o retorno de minhas funções motoras e cognitivas.

Não sei se será uma questão de dias, meses, anos, ou se nunca será. Mas o tiro afetou meu sistema límbico ou o córtex pré-frontal. De modo que alguns fatos agora me fogem a memória e tornei-me imune a algumas emoções afetivas, bem como ao desejo pelo vício e os sentimentos de culpa.

Vovô estava certo. Tudo o que um homem precisa é de uma Smith & Wesson.

E de uma bala na cabeça.

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[1]  Comentário que Keith Richards havia feito no final dos anos sessenta sobre Mick Jagger. Sobre o fato de Keith achar que Mick, depois que ter visto David Bowie,  tentava imitá-lo. Há quem diga que Mick, espantando, perguntava-se “Será essa a nova onda do futuro?”