Nesse perigoso momento de nosso país, não nos faltam recursos teóricos, materiais históricos, acesso à informação, espaço para divulgar e absorver novas ideias. Tirando o fato de estarmos profundamente imersos nesse período inegavelmente conturbado – o que naturalmente nos causa uma sensação de confusão e atordoamento –, temos tudo o que precisamos para avançar na compreensão desse poderoso e, infelizmente, perigoso fenômeno: a interiorização do ódio como sentimento útil e, ao mesmo tempo, recurso político supostamente legítimo na resolução de divergências políticas e problemas sociais.
Já estamos razoavelmente familiarizados com termos ou expressões como “modernidade líquida”, “pós-verdade”, “discurso de ódio”, “fascismo”, “nazismo”, “violência simbólica”, “violência estrutural” etc. As diversas análises a que tenho acesso são, a meu ver, excelentes e falam por si mesmas. Não creio que poderia acrescentar nada de novo a elas. Entretanto, há algo que simplesmente não me deixa “quieto no meu canto” – para usar um bom “potiguês”. Como professor de lógica, tento mostrar aos meus discentes a importância da razão, do raciocínio coerente e rigoroso, de se raciocinar através de princípios simples e facilmente compreensíveis, de se perceber incoerências estruturais graves entre discursos, evidências e atitudes (por que não!?).
Um dos mais notáveis sinais de que estamos vivendo tempos sombrios é o fato de que, enquanto corpo político, estamos parando de nos espantar com certas coisas – coisas que, em tempos de sobriedade, racionalidade e visão clara, seriam completamente inaceitáveis e imediatamente acompanhadas de massiva reprovação moral. Por causa desse tempo de “nevoeiro” – do qual tratarei em breve –, a cegueira coletiva parece impedir o raciocínio mais básico e rudimentar; parece, na verdade, paralisar e impedir que a razão e o bom-senso simplesmente façam seu trabalho.
Em palestra no Clube da Hebraica, na última segunda-feira (03/04/2017), Jair Bolsonaro – Dep. Federal (PSC) – repetiu mais uma vez seu conhecido discurso de ódio e, como de costume, instanciou – ovacionado, diga-se de passagem – uma série de argumentos falaciosos e mal construídos. Eu poderia listar aqui uma série de adjetivos e carinhosamente atribuí-los a esse senhor. Eu poderia também desconstruir cada um dos argumentos e lugares-comuns que ele utilizou em sua fala – isso mesmo, aqueles que teriam irritado o próprio Aristóteles e provavelmente adicionado algumas páginas a seu Organon. Mas, quer saber? Para quê? De que adiantaria, não é mesmo?
Honestamente, creio que essa seria uma tarefa deveras infrutífera. Posso estar equivocado mas, a essa altura, cheguei à conclusão de que apontar incoerências, desconstruir seu discurso em nível acadêmico ou tentar uma reprovação moral só o tornará mais popular – devemos lembrar que, em tempos de ascendência de ideologias fascistas, a aversão ao pensamento acadêmico e intelectual é uma consequência esperada. Ou seja, nenhuma dessas estratégias adiantaria, pois em nada mudariam as opiniões de seus apoiadores. Já em relação a vocês, leitores e leitoras deste jornal, creio que a tarefa não seria necessária: vocês sabem bem do que estou falando. Então, o que há de novo? Por que escrever o presente texto? Respondo: para compartilhar uma pequena reflexão e, ao mesmo tempo, uma pequena dose reconfortante de otimismo.
Por alguma razão, a palestra de Bolsonaro na Hebraica me fez lembrar um excelente filme que vi há alguns anos atrás. Baseado em uma obra de Stephen King, escrito e dirigido pelo diretor Frank Darabont e exibido pela primeira vez em 2007, The mist (“O nevoeiro”, em português) é mais um daqueles trabalhos que, com simplicidade, didatismo e um certo sarcasmo – interpretação minha, devo admitir –, avança em um insight muito poderoso sobre nós, seres humanos: o de que, em tempos de cegueira, confusão e atordoamento coletivos, aquele que é fanático e insano o suficiente para fornecer as respostas mais “simples” – e supostamente imediatas – para qualquer tipo de problema verá sua base de apoio crescer – em proporção, é claro, ao grau de confusão, cegueira, desespero, ódio e ignorância envolvidos na situação. Não posso deixar de observar que, dependendo justamente do grau de cegueira, ignorância, medo etc., a insanidade coletiva – e, em consequência, a violência que decorre desta insanidade – é um resultado esperado; um resultado que não surpreende.
“O nevoeiro” narra a história de um homem que se vê imerso numa situação que, além de perigosa e aterrorizante, é aparentemente sem explicação. Logo após uma forte tempestade causar sérios danos em sua propriedade, David Drayton (acompanhado de seu filho de 8 anos e um vizinho) vai ao supermercado comprar materiais de reparo. Chegando lá, várias coisas estranhas começam a acontecer: carros de polícia e bombeiro passando às pressas, terremotos, uma sirene soando, militares em movimentação e, finalmente, a chegada de um grande e inexplicável nevoeiro. Rapidamente se percebe o seguinte: qualquer um que tentar sair e adentrar no nevoeiro será brutalmente morto por monstros horríveis (também sem explicação). A partir daí, o filme apresenta a fórmula perfeita para a loucura coletiva: ignorância, confinamento, confusão, medo, frustração, raiva… loucura.
A ignorância é, sem dúvida, um dos principais elementos dessas situações; é a base de tudo o que se segue. Quando uso o termo “ignorância”, de modo algum o faço num sentido pejorativo. Raciocina por ignorância quem adota o seguinte procedimento:
Exemplo 1: “Observo X [fenômeno desconhecido]. Logo, a causa de X deve ser Y [hipótese não testada].”
O problema de raciocinar por ignorância é que a premissa “Observo X” é insuficiente para dar garantia evidencial à hipótese Y. Em outras palavras: o exemplo 1 constitui um argumento logicamente irrelevante e epistemologicamente insuficiente. Uma variação deste argumento é a conhecida falácia “Ad ignorantiam”:
Exemplo 2: “A causa disto é Y, pois ninguém provou que não é”.
Novamente, uma maneira de racionar por ignorância. Por que, então, utilizar o termo ignorância? Respondo: afirma-se Y na base da ignorância do que realmente seja X. Isto é, ignora-se o que realmente seja X, e parte-se para qualquer explicação que faça sentido ou seja aparentemente coerente – ainda que não se tenha evidências suficientes para sustentá-la.
Pois bem, vocês já devem perceber aonde quero chegar. Considerando uma situação similar àquela apresentada pelo filme “O nevoeiro”, não é estranho esperar que alguém raciocine por ignorância e forneça a explicação que lhe seja mais conveniente, ou que seja coerente com suas convicções pessoais:
Exemplo 3: “Observo este nevoeiro [e tudo o que está ocorrendo junto com ele]. Logo, deve ser o juízo final, e eu fui escolhida por Deus para dizer isso a vocês.”
Esse é o raciocínio empregado por um dos personagens do filme – uma senhora de meia idade chamada “Carmody”. Falaremos já sobre ela. Por ora, vejamos outros elementos envolvidos no experimento mental proposto pelo filme. As pessoas estão confinadas num supermercado, aterrorizadas com a probabilidade cada vez maior de uma morte violenta (alguma semelhança?), frustradas por não poderem fazer muita coisa para mudar sua situação (familiar?) e não compreendem o porquê daquilo estar acontecendo (uau!).
Agora é hora de falar sobre Carmody. Apresentada no filme como uma religiosa fanática, não perde tempo em afirmar que a causa de tudo aquilo é o juízo final. Como é de se esperar, no início de tudo nenhuma atenção é dada ao que ela diz – ela seria só mais uma dessas pessoas que têm complexo de messias (aham…). Porém, à medida que o quadro piora – pessoas começam a morrer já nas dependências do supermercado – e a situação começa a ficar mais desesperadora, Carmody ganha rapidamente a confiança de muitos e, consequentemente, muitos adeptos. Para ela, tudo aquilo não passaria de uma prova de Deus para aqueles que têm fé; não passaria de um teste para os verdadeiros crentes. E claro: ela era aquela que sabia de tudo o que estava acontecendo desde o início, bem como tudo o que deveria ser feito para se escapar dali com vida. Carmody se torna a líder absoluta (familiar?) de uma boa parte do grupo (um mito, talvez?).
Obviamente, alguns ainda mantém o discernimento e passam a ser os poucos opositores das propostas mirabolantes de Carmody, que incluíam a punição e a tortura de “transgressores”, “pecadores” – isto é, daqueles que discordavam dela. Em breve, a insanidade coletiva que girava em torno de Carmody chega ao ponto de exigir um sacrifício humano – o que é levado a cabo, enquanto alguns de seus seguidores já oravam de joelhos (ao mesmo tempo em que um ser humano era brutalmente assassinado). Os opositores de Carmody já não podiam acreditar: estavam perplexos e horrorizados mas, a partir dali, já eram minoria. A cegueira coletiva continua: desta vez, Carmody exige o sacrifício do filho de David – uma criança de oito anos. Para não tirar a surpresa, vou parar por aqui. Mas meu ponto é o seguinte: é assustador observar o que Carmody e seus seguidores estavam dispostos a fazer para “resolver” seus problemas.
Quando lembro da fala de Bolsonaro no Clube da Hebraica, dos aplausos dos participantes – todos eles “judeus”; quando observo que o dito palestrante não foi preso em flagrante pelo crime de racismo; quando observo o total divertimento e apoio de alguns, por mais insanas, mirabolantes e violentas que sejam aquelas ideias, não consigo deixar de me perguntar: quando esse nevoeiro vai acabar?
Mas sabem de uma coisa? Todo nevoeiro é passageiro, não é mesmo? E é aí onde reside minha esperança. Esse nevoeiro vai passar. Costumo sempre dizer a meus discentes: não podemos deixar o humanismo morrer. É ele que nos impedirá de atirar no escuro e atingir um inocente, no meio de tanta cegueira.
* Me solidarizo com os judeus que não fizeram parte disso. Nós todos sabemos que isso não os representa. Que seus irmãos nunca sejam esquecidos e que sejam eternamente honrados.
* A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão encaminha representação contra o deputado citado neste artigo. Confira no informativo oficial da Procuradoria: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/informativos/edicoes-2017/abril/070417>. Acesso em: 9 abr. 2017.
* Imagem destacada retirada de <http://1428elm.com/2016/04/14/why-im-excited-for-stephen-kings-the-mist-tv-reboot/>. Acesso em: 9 abr. 2017.