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Uma reflexão sobre a crueldade: o que os romanos têm a nos ensinar?

Às vezes fico imaginando como os antigos romanos conseguiam lidar com os atos cruéis praticados nas lutas de gladiadores. Como eles conseguiam não apenas aceitar, mas gostar de ver as execuções, amputações, os gritos de horror e agonia, as súplicas infelizes dos derrotados – muitos dos quais, inclusive, nunca escolhendo estar ali, participando daquele horrendo “espetáculo”? Como conseguiam conviver com o original e verdadeiro circo dos horrores? A verdade, todavia, é que nem todos conseguiam; nem todos toleravam tamanha violação à humanidade dos outros.

Em sua obra “De brevitate vitae” (Sobre a brevidade da vida), Sêneca – filósofo romano – tece a seguinte crítica a Pompeu:

Mas acaso há um mínimo de valor em saber que Pompeu foi o primeiro a proporcionar um combate no Circo com dezoito elefantes, tendo-se enviado criminosos para enfrentá-los, como se fosse uma batalha? O primeiro dos cidadãos e, segundo o que a fama nos legou, homem que sobressaiu entre os antigos líderes por sua bondade, julgou ser um novo tipo de espetáculo digno de memória matar homens de um modo novo. Combatem até a morte? — É pouco. Despedaçam-se? — É pouco. Que sejam esmagados por uma enorme massa de animais! Seria suficiente que esses assuntos passassem ao esquecimento, para que posteriormente um prepotente qualquer não aprendesse e invejasse uma ação tão desumana1.

O trecho acima mostra clara atitude de desaprovação em relação ao ato de derramar sangue humano. Ou seja, o que já era ruim – o combate até a morte, as mutilações – ficou pior: os infelizes gladiadores passaram a ser esmagados pelos animais ferozes – tudo, é claro, em prol do divertimento, da satisfação popular e do sentimento de justiça cumprida. Certamente, para não assumirem sua própria crueldade (enquanto seres humanos que também contribuíam para a perpetuação daquela barbárie), alguns romanos devem ter recorrido a lugares comuns, populares ainda hoje, tais como “criminoso bom é criminoso morto” ou “devia ter pensado antes de cometer um crime”, ou ainda “ah, eles são apenas escravos, homens inferiores por natureza” – perdoe-me a ironia, ó mestre Aristóteles!

Já naquela época, alguns estavam bem cientes acerca da aplicação mais abrangente do adjetivo “cruel”. É interessante observar que, em latim, há uma diferença importante entre as palavras “cruor” e “sanguis”. “Sanguis” é usada para descrever o sangue que circula normalmente dentro das veias. “Cruor”, por outro lado, é usada para descrever o sangue derramado de modo violento; isto é, aquele sangue que escorre das feridas causadas por traumas, por golpes. É daí que vem a palavra “cruel” – “crudelis”, em latim –, significando algo como “indivíduo que gosta de fazer o sangue [cruor] dos outros correr”.

Mas vejam que “gostar de fazer o sangue correr” é uma expressão um tanto vaga. Em uma acepção, pode se referir àqueles que, pessoalmente, gostam de ferir, torturar e matar. Seria a acepção mais apropriada aos assassinos cruéis, aqueles que praticam, eles mesmos, o ato de derramar o “cruor” [sangue]. Mas a vagueza da expressão permite uma outra acepção, mais ampla, que também fazia pleno sentido e era empregada pelos romanos.

Num sentido mais amplo, “crudelis” – isto é, “cruel” – também podia ser empregada como um adjetivo negativo ainda mais genérico; isto é, podia ser usada para descrever a personalidade do homem responsável pela organização, patrocínio ou realização daquelas carnificinas “lúdicas” legalizadas. Afinal de contas, aquele que é o responsável e organizador de eventos em que o derramamento do “cruor” é o objetivo certamente é responsável por fazer correr o sangue – ainda que de modo indireto. Razão pela qual posso imaginar a frustração de Sêneca ao observar a importância social que se dava a pessoas como Pompeu, responsáveis por atos tão horrendos e indignos a qualquer forma de vida.

Mas é só? A aplicação do adjetivo “cruel” se esgotou? Claro que não. Ainda falta levar em consideração os espectadores, isto é, as plateias das carnificinas. O que dizer daqueles que assistiam aos “jogos” de gladiadores com interesse, satisfação e até regozijo? Claro, como já mencionei antes, muitos deviam dormir confortáveis ao convencerem-se de que, ao comparecerem e torcerem nos “jogos”, estavam exercendo sua cidadania e prestigiando a aplicação da justiça. Esse raciocínio, com uma certa pitada de autoproteção psicológica, é claro, deve ser mais tolerável do que admitir que há algo de muito perturbador tanto com indivíduos quanto com uma sociedade que é capaz de sentir prazer e satisfação em assistir tanta CRUELdade. No entanto, temos de ser compreensíveis neste ponto, pois os romanos não valorizavam tanto o amor, o perdão, a compreensão e a tolerância como nós – não é mesmo!?

Para alguém que não é cruel, seja lá qual for a acepção que se dê a “cruel”, os “jogos” romanos seriam intoleráveis. Seriam simplesmente insuportáveis de assistir. Para alguém não-cruel – seja lá qual for a acepção do termo –, qualquer juízo de valor sobre os gladiadores e seus crimes seria irrelevante, dado que nada elimina o fato de que “fazer correr sangue” é, indiscutivelmente, algo forte de se ver e indigno de um ser humano que se diz “de bem”, “civilizado” e “cristão”. Assim como o é o ato de sentir regozijo, satisfação ou prazer em apenas assistir o sangue de outrem correr.

É natural que a pessoa não-cruel tenha medo da pessoa cruel. Afinal, quem não pratica qualquer tipo de violência – seja ela física, verbal ou psicológica – está completamente à mercê daquele que tem costume em praticá-la. Sendo um filósofo completamente “tranquilão”, suponho que Sêneca tenha sentido medo daqueles gladiadores. Certamente, dado que alguns deles eram, de fato, violentos e cruéis – na acepção restrita do termo “cruel”. Porém, penso que ele igualmente sentiu medo de pessoas como Pompeu – isto é, pessoas que organizavam e administravam essas matanças brutais. E claro, considerando quem ele foi – alguém dedicado a uma vida de reflexão e que percebeu no que Roma havia se tornado –, Sêneca deve ter tido muito medo de seu povo e do que seus próprios vizinhos eram capazes não apenas de tolerar, mas de apreciar com tanto deleite.

Fazendo essa pequena reflexão, agora quem sente medo sou eu. Sinto um enorme medo dos cruéis: DE TODOS OS CRUÉIS. E você, caro leitor, o que sente?

Observação: qualquer semelhança com a situação atual do Brasil, com o Estado do Rio Grande do Norte, com o colapso da segurança pública, da racionalidade e do bom senso é mera coincidência. Ou não.

1 Retirado de “https://ateus.net/artigos/filosofia/sobre-a-brevidade-da-vida/”. Acesso em 27 jan. de 2017.