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Mortes nas prisões: aceitação da barbárie?

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Alipio DeSousa Filho (Cientista Social, professor da UFRN)

22755383     Os massacres de prisioneiros nas prisões brasileiras – o mais recente deles no RN: fala-se de 26 mortos, 24 deles decapitados; mas, até aqui, número incerto – parece não produzir indignação a bom número de pessoas e, para outro tanto, parece método aprovado. Algo do horror de nossos dias (por tanto que temos deixado de fazer para que a vida seja vivível por todos) mas que não deixa de provocar espanto. É sabido, para uma parcela da sociedade brasileira, a morte daqueles socialmente distinguidos como “bandidos” não deve importar, e tão melhor se mais cruel. Essa é opinião social construída na-e-pela miséria cultural e intelectual espalhada pelas diversas classes sociais do país e que é afirmada na conversação cotidiana. É essa parcela da sociedade que concebe e requer do Estado que a lei e o que chamamos de Justiça sejam praticadas como vingança e para a qual as prisões devem ser “não hotéis” mas espaços de sofrimento, humilhação, espancamentos, estupros, crueldades…

Por outro lado, é também verdadeiro que uma outra parcela da sociedade brasileira não admite que assim seja e que reclama e luta para que os assuntos das prisões, da vida de prisioneiros e do tratamento do Estado a ser dado àqueles que praticam delitos mais diversos, como configurados nas leis, sejam abordados e enfrentados mantendo-se o respeito aos direitos das pessoas, sem destituí-las de sua qualidade de humanos. Isto é, sem deixar de considerar que, mesmo agentes de delinquências, sendo seres humanos, devem ser tratados como seres capazes de reflexão, superação, modificação. Para o que não se torna possível pensar que devem ser destruídos fisicamente, como se fossem coisas, ou subjetivamente, como se fossem seres a se submeter continuamente a métodos de violência simbólica, psicológica, emocional.

Essa segunda parcela da sociedade brasileira educou-se nas concepções modernas que deram aos Estados doutrinas e leis que os dotaram de instituições e regulações que fazem que hoje, nas sociedades moderno-contemporâneas, a crueldade como método institucional somente sobreviva como vontade dos ignorantes, dos estúpidos e dos perversos. Sobrevivência na vontade, mas inteiramente afastada da lei que fundamenta a doutrina da ação do Estado moderno. Embora, em países como o Brasil, não raro seja o aparelho de Estado, pela ação de seus agentes, um aparelho de crueldades acionado sobretudo contra os mais pobres, os desvalidos, contra aqueles que caíram em desgraça na desgraçada vida para a qual foram empurrados.

E é porque não estamos mais em sociedades pré-modernas que podemos e devemos exigir daqueles que ocupam os cargos públicos, como governadores, secretários, diretores de presídios ou agentes penitenciários, que ajam respeitando os fundamentos do Estado moderno, fundamentos que buscam construir estados de civilização afastados de toda barbárie. Mas eis que, pelo meio, em nossas províncias e cidades, ocupam os cargos públicos pessoas que agem como ventríloquos da opinião social ignorante, verdadeiros ventríloquos da barbárie, distribuindo frases como estas: “não há santos nas prisões”, “prisão não é hotel”, “é difícil impedir as mortes”, “os presos são pessoas com um nível de violência gigantesco”, “hoje, a política é amordaçada e o criminoso tem mais direito do que obrigação”. Frases de um discurso ideológico e de poder que, simultaneamente, repete e reforça a opinião social que reclama por um Estado bárbaro, proferidas por encarregados da administração pública no país, quando o assunto é o sistema prisional brasileiro, a miséria das prisões, a violência praticada contra prisioneiros, mas de quem, com as expectativas do Estado moderno, esperar-se-ia outras frases…

Fala-se de uma “crise” no sistema prisional hoje. Ora, ele nunca esteve fora de uma “crise” desde que foi abandonado ao descaso histórico de sua administração. E apontar a “briga de fações rivais” como a “causa” das sucessivas matanças de prisioneiros, à vista de outros e sob o olhar de agentes penitenciários, não é mais que oportunismo cruel de gestores públicos. Falam das disputas entre as fações inimigas como se se tratasse de algo cuja autonomia estivesse acima das forças do Estado, e como se este nada pudesse fazer ou mesmo nada soubesse.

Todos sabemos que as facções existem e que disputam o controle dos cárceres. Mas o que não se pode tolerar é que o Estado consinta a morte de pessoas que estão sob sua guarda nos presídios. O que não se pode tolerar é que seja o Estado o gestor da morte, quando deve ser gestor da custódia provisória da vida daqueles que, por motivos variados, tornaram-se delinquentes conforme convenções legais. Algumas delas questionáveis como a atual lei de drogas, vigente no país deste 2006, que, como apontam diversos estudos acadêmicos ou do próprio Estado, somente tem servido para superlotar os presídios brasileiros com jovens pobres, negros, moradores das periferias de nossas cidades, ao serem tratados como traficantes, quando muito são “mulas” ou consumidores. Mas as facções não estariam empreendendo suas disputas de poder, não estariam recrutando os seus “filiados” nas próprias prisões e não estariam matando prisioneiros se o Estado estivesse administrando o sistema prisional como deve. O que ocorre é que, até aqui, temos um Estado dirigido por governantes e administradores que deixaram as prisões entregues ao mais desumano abandono e que adotam o desdém como regra, por eles próprios considerarem como sem direito à vida aqueles que lotam os cárceres.

Num país no qual 41% daqueles que estão nas prisões ainda não foram julgados e, portando, não têm sentenças condenatórios, são os chamados “presos provisórios”, e no qual 90% dos prisioneiros cumprem penas de prisão por crimes que poderiam cumprir penas alternativas, revela-se como se constituem os assombrosos dados que compõem a população carcerária do país – hoje a terceira do mundo, se consideradas as prisões domiciliares. Mas, na escuridão da empiria e das sensações do “aumento da violência” (e, como sabemos, desde Platão, se se permanece na escuridão das sensações não se chega ao conhecimento da realidade), bom número de pessoas no país enxerga o aumento da população carcerária como eficácia do Estado, resultado da “valentia das autoridades” – e há mesmo aqueles ocupantes de cargos públicos que o “xerife” sobe à cabeça! –, ainda que se deixe de saber que, quanto mais cheias as prisões, mais potencializadas serão as redes e tramas da “violência” de que tanto se fala.

O filósofo e professor da USP Vladimir Safatle, em artigo recente sobre também o assunto das mortes nas prisões, assim escreveu para a turba insana que aplaude as mortes nas prisões: “ ‘Tem pena, leve para casa’, grita a turba. Mas, sabe turba, não, não temos pena. Temos indignação, o que é algo totalmente diferente. Não queremos levar ninguém para casa, queremos que o Estado brasileiro saia do banditismo que muitos aplaudem. Já os gregos sabiam, ao menos desde ‘Antígona’: retirar a humanidade daqueles que o Estado julga criminosos é a forma mais rápida de destruir o próprio Estado, de fazer do Estado outro criminoso.” (O direito de matar. Folha de S. Paulo, 6/01/2017). É isso mesmo: trata-se de manter nossa indignação, sobretudo com o descaso do Estado/dos governantes e com a inação do Judiciário do país quando os assuntos são o sistema prisional, os julgamentos atrasados, a indistinção de penas, o desdém na aplicação de penas alternativas… E, mais ainda, trata-se de não aceitarmos que a barbárie vença, seja a das facções, seja a do Estado, em sua cumplicidade e inação!

Já defendi, em outro de meus textos, o fim das prisões, a utopia de uma sociedade sem prisões. Continuarei a fazê-lo. Devemos lutar por sociedades sem prisões. Se não é para hoje, lutemos por esvaziar as prisões desde agora, com o uso de penas alternativas, para que não sejamos todos cúmplices da barbárie das-e-nas prisões!