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A ficção contaminou a Política no documentário “HyperNormalisation”

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Era uma vez o colapso econômico da antiga União Soviética. Diante da inevitável decadência do modelo comunista de Estado, seus dirigentes partiram para uma inédita tática de “gestão da percepção”: manter a aparência de normalidade através de narrativas ficcionais que minavam a percepção das pessoas, criando aversão à política fazendo-as tocarem a vida como se nada estivesse acontecendo. Isso chama-se “HiperNormalização”, tática copiada pelo Ocidente desde Ronald Reagan nos anos 1980 – levar conceitos do teatro de vanguarda e dos roteiros hollywoodianos para o centro da Política a tal ponto que a diferença entre realidade e mentira passa a ser desprezada pelas pessoas e pelo próprio jornalismo. Dessa maneira, Trump “surpreendentemente” chegou a poder nos EUA. Esse é o tema do documentário da BBC “HyperNormalisation” (2016), realizado pelo britânico Adam Curtis. A história de como a política foi derrotada pela ilusão enquanto as pessoas apolíticas desistiram de mudar o mundo, refugiando-se no ciberespaço. Enquanto isso, corporações e o sistema financeiro administram tranquilamente o deserto do real.

Era o ano de 2002 e o Primeiro Ministro inglês Tony Blair e o presidente dos EUA George Bush estava possuídos pela ideia de que o mundo deveria se livrar de Saddam Hussein. Estavam determinados em achar qualquer coisa que provasse as más intenções do ditador iraquiano.

Então o chefe do MI-6, o serviço de inteligência britânico, contou empolgado a Blair que tinha conseguido acesso direto ao programa de armas químicas de destruição em massa de Hussein. Disse que a fonte confirmava tudo! O Iraque estava produzindo grandes quantidades de gás Sari e VX, letais para o sistema nervoso. Estavam sendo carregados em “esferas ocas de vidro”.

Mas alguém do MI-6 notou que os detalhes relatados pela fonte eram idênticos às cenas do filme A Rocha (1996) com Sean Connery e Nicolas Cage.

As diferenças entre realidade e ficção ficam ainda mais tênues quando percebemos que os anos que antecederam aos atentados nos EUA em 2001 tiveram um inédito pico de produção de filmes hollywoodianos sobre destruição em massa perpetrados por aliens, monstros e terroristas como, por exemplo, Independence Day ou Godzilla. E Nova York era sempre a cidade icônica das catástrofes. 

Essas são algumas das histórias narradas pelo documentário HyperNormalisation (2016), documentário BBC do britânico Adam Curtis (O Século do EgoAll Watched Over by Machines of Loving Grace). O tema geral do documentário é mostrar como, desde a década de 1970, governos, financistas, jornalistas e utopistas tecnológicos abandonaram o mundo real e não só construíram como também passaram a viver nesse mundo falso simplista, esquemático e maniqueísta. Um mundo administrado por corporações e mantido estável pela política. 

Esse mundo simplista passou a ser administrado pela “gestão da percepção”, uma versão hiper-realizada da antiga engenharia de opinião pública – enquanto no passado, através das técnicas clássicas de retórica, mobilizava-se uma engenharia de relações públicas para inculcar ideologias, ideias ou conceitos, agora com a “HiperNormalização” criam-se “climas de opinião” e “ondas de choque” cujo eixo central e apagar as fronteiras entre ficção e realidade – mais precisamente, entre as narrativas de entretenimento (filmes, animações, literatura, minisséries etc.) e os acontecimentos pautados pelo noticiário da grande mídia.

Aversão à política e individualismo

Dividido em nove episódios, Curtis mostra como a estratégia de HiperNormalização surgiu na antiga União Soviética nos anos 1970 para depois ser adotada pelas potências do Ocidente. Durante o colapso econômica da URSS, o governo soviético mantinha a aparência de normalidade como se tudo pudesse ser planejado a partir de imagens grandiosas, tal como as glórias olímpicas no esporte. Resignados e desiludidos com a política, os cidadãos tocavam suas vidas fingindo que tudo estava normal porque não encontravam alternativas para o futuro. O escritor Alexei Yurchak chamou isso de “HiperNormalização”, uma espécie de profecia-autorrealizável aceita por todos como real.

No Ocidente, a estratégia da HiperNormalização foi fundada em dois princípios: a aversão à Política porque é algo muito complexo e, em si, corrupta; e o refúgio no individualismo e em narrativas que, num “efeito bolha”, simplificavam o mundo por meio de narrativas esquemáticas inspiradas em produções de entretenimento. 

Para Adam Curtis, a partir dos anos 1970 toda uma geração desistiu de transformar o mundo, refugiando-se no individualismo empoderado por um verdadeiro flashback lisérgico dos anos 1960: a utopia tecnológica do ciberespaço nos anos 1980 (principalmente na visão utópica de John Barlow) como um mundo alternativo livre das restrições políticas e jurídicas, mas que escondia o poder crescente das corporações financeiras.

Desconexão do real

O mundo da especulação financeira que cresceu a partir do colapso econômico de Nova York de 1975 – com a crise fiscal, a cidade foi entregue à ideia de que os sistemas financeiros (e não mais o Estado) podiam gerir a sociedade. Donald Trump emerge nesse momento, adquirindo imóveis abandonados sob isenção de impostos, tornando Nova York uma cidade elitista.

Trump, ao lado do presidente Ronald Reagan nos anos 1980, seriam os precursores de um tipo de política totalmente desconectado da realidade com uma gestão de percepção capaz de distrair as pessoas das complexidade do mundo real – por exemplo, a criação do super-vilão Muammar Kadhafi como responsável por atentados em Roma, Viena e numa discoteca em Berlim naquela década. 

Papel prontamente aceito pelo líder líbio, que não resistia aos holofotes da grande mídia. Como mais tarde nos anos 1990, na Guerra do Golfo, Saddam Hussein também aceitaria o mesmo papel na sua cruzada em se tornar um midiático líder do povo árabe.

Enquanto isso, antigos líderes da causa socialista nos EUA como a atriz Jane Fonda desistiam do mundo real: o documentário mostra um dos seus vídeos de exercícios aeróbicos na TV exortando as pessoas a cuidarem do seu próprio corpo porque “o mundo lá fora é complicado demais e, pelo menos, podemos controlar o próprio corpo”.

Acreditando na própria mentira

O mais incômodo no documentário HyperNormalisation não é tanto o fenômeno da “gestão da percepção”, mas principalmente como os líderes ocidentais parecem crer nas próprias narrativas criadas pelos seus assessores, relações públicas e serviços de inteligência. 

Enquanto a Política transforma-se numa espécie de mundo autônomo de simulações no qual os seus líderes entram de tal forma nos papéis ficcionais que esquecem quem foram, no mundo real corporações e o sistema financeiro administram o equilíbrio sistêmico de lucros e desigualdade, livres de qualquer escrutínio de uma sociedade que desistiu do mundo real.

Para Curtis, esse mundo global, cuja estrutura foi imaginada pelo Secretário de Estado Henry Kissinger nos anos 1970, só foi possível com a divisão do mundo árabe e a manutenção dos conflitos no Oriente Médio.

Trump, Obama, Reagan, Blair, Bush, etc. seriam líderes que acreditam nas suas própria pantomimas. Personagens ficcionais criados para consumo massivo através da grande mídia e que simplificam a complexidade da política real ao participarem de narrativas ficcionais, muitas vezes extraídas de roteiros de sucessos hollywoodianos.

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