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Reforma da Previdência: contradições e riscos sociais da idade mínima universal

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O Brasil, dizem os demógrafos, está se tornando um país velho muito rapidamente. Tendências demográficas, tais como a diminuição da mortalidade infantil, queda na fecundidade e redução da mortalidade adulta, que levaram mais de um século para se consolidar nos países europeus, estão se concretizando no Brasil num espaço muito menor de tempo. E, não fosse os altos índices de mortalidade entre jovens em razão da criminalidade violenta, poderia ser ainda mais rápido.

No entanto, nem tudo que parece bom é, de fato, inteiramente bom.  Se viver mais é uma preciosa conquista civilizatória da sociedade brasileira, por outro lado, alertam os economistas e especialistas previdenciários, isso representa um enorme perigo fiscal para as contas públicas do Estado, especialmente quando junto ao viver mais as taxas de fertilidade decrescem – o Brasil, aliás, figura com índices entre os mais baixos da América do Sul. A alteração na estrutura demográfica da população, com mais pessoas recebendo aposentadorias e pensões – e menos pessoas contribuindo e adentrando no mercado de trabalho -, coloca em xeque a viabilidade financeira da previdência social.

Ao contrário do que sustenta a equipe econômica de Temer, a famigerada Reforma da Previdência, encabeçada pelo seu governo, não se explica exclusivamente pelo contexto e projeções demográficas da sociedade brasileira. Seu imperativo político não é apenas uma questão de adaptação “à nova realidade demográfica brasileira a fim de que a atual geração em idade ativa e as próximas que a sucederão tenham a garantia de sua aposentadoria”. Ela é, como apontam diversos analistas, exigência lógica para a PEC 55, e seu projeto de congelamento dos gastos primários do governo por 20 anos. O próprio relator da PEC do Teto dos Gastos na Câmara, Deputado Darcísio Perondi, disse à época que o ajuste fiscal “não sobrevive sem a reforma da Previdência (…) É uma dependência biológica entre os pulmões e o coração, um não vive sem o outro”.

Em outras palavras, a Reforma da Previdência é parte essencial da agenda de austeridade para a implantação do que tem sido intitulado, com eufemismo e sob os vivas do capital rentista-financeiro, de “novo regime fiscal”. Por isso, ela segue o mesmo princípio das demais medidas: salvar as cifras dos cofres públicos para uma porção restrita de investidores internacionais, grandes empresas, famílias endinheiradas e indivíduos das altas carreiras corporativas do Estado, ainda que seja ao preço do bem-estar social e da promoção da cidadania da maior parte da população.

De modo geral, a PEC 287/16, que é onde a dita Reforma da Previdência está sistematizada, cria regras e mecanismos que dificultam o acesso à aposentadoria para aqueles que ainda não estão aptos ao benefício. Dentre as diversas mudanças nas regras de acesso aos benefícios previdenciários e de seguridade que a dita PEC 287/2016 propõe, gostaria de levantar algumas questões e contradições que, a meu ver, podem advir de uma delas em particular. Trata-se de uma das principais e mais impactantes alterações em relação ao regime vigente, a saber: o estabelecimento de uma idade mínima para aposentadoria.

Nas regras atuais, não existe idade mínima. O critério necessário é o tempo de contribuição para Previdência, sendo 35 anos para homens e 30 anos para mulheres, independentemente da idade dos contribuintes, sendo ainda garantido o benefício mínimo a todos os que contribuírem por pelo menos 15 anos. Essa regra, conhecida pela sigla ATC, acaba por produzir uma dupla contradição: em primeiro lugar, um contingente amplo de pessoas com capacidade laboral ativa aposenta-se precocemente. Conforme dados da PNAD/IBGE (2015), 19% dos aposentados no país possuem menos de 60 anos e 27% se mantêm ocupados. Em números absolutos, isso corresponde 4.497.675 e 6.161.815 pessoas, respectivamente.

A precocidade e o número elevado de aposentados que acumulam renda previdenciária e do trabalho resulta na segunda contradição dessa regra: em vez de proteção e garantia de renda para pessoas que perderam a capacidade laboral, verdadeiro significado civilizatório da ideia de previdência, temos, na prática, uma complementação e acumulação de renda.  Dado o perfil social dos que conseguem se aposentar precocemente por tempo de contribuição e manter-se ocupado no Brasil, o resultado é o reforço da desigualdade social no país. Os trabalhadores urbanos mais pobres, mesmo ingressando mais precocemente no mercado de trabalho e podendo se beneficiar da carência mínima de 15 anos de contribuição, costumam se aposentar em média aos 63 anos ou aos 65 de idade pelo BPC/LOAs[i] por causa de sua inserção precária e das trajetórias irregulares entre informalidade, subemprego temporários e emprego formal. Por sua vez, os trabalhadores urbanos mais qualificados e melhor remunerados conseguem a aposentadoria por tempo de contribuição, em razão da maior estabilidade de sua trajetória profissional, de sorte que costumam usufruir do benefício em média aos 50 e poucos anos. Ou seja, os trabalhadores em melhores condições no mercado se aposentam mais cedo do que aqueles que enfrentam mais adversidades e estão em piores condições no mercado de trabalho. No gráfico abaixo, podemos visualizar essa contradição:

 

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Idade média de aposentadoria urbana (idade, ATC e BPC/LOAS) no INSS/RGPS x PIB per capita por Unidades da Federação – Brasil. Fonte: Constazi & Ansiliero, IPEA/Nota Técnica 29, 2016.

O estabelecimento de uma idade mínima universal tende a amenizar essa contradição ao tornar mais homogênea as regras face às desigualdades estruturantes do mercado de trabalho brasileiro. Porém, ela pode produzir e agravar novas contradições e riscos sociais. Há pelo menos 3 grandes consequências pertinentes e socialmente graves:

1. Achatamento do tempo de usufruto do benefício.

Na PEC 287, o critério tempo de contribuição deixa de existir como condição suficiente para a aposentadoria. Em seu lugar, entra a idade mínima e unificada de 65 anos, tanto para homens quanto para mulheres. Ainda de acordo com esta regra, será necessário um mínimo de 25 anos de contribuição. Vale ressaltar que essa nova regra asseguraria o acesso ao benefício parcial. O benefício integral, por sua vez, somente para aqueles que contribuírem por longos 49 anos!

Levando em conta a expectativa de sobrevida aos 65 anos, indicador mais adequado para avaliar o impacto da nova regra previdenciária, pois permite examinar a esperança de vida daqueles que chegam à idade definida para a aposentadoria, o Brasil apresenta taxas de 19 e 16 anos para mulheres e homens, respectivamente. Pode parecer muito, contudo, quando comparado com a expectativa de sobrevida de outros países que também adotam a mesma idade mínima proposta pela PEC 287/16, constatamos a disparidade:

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A maioria dos países listados no gráfico adotam a idade mínima de aposentadoria de 65 anos ou estão implementando acréscimos progressivos para atingir esse patamar ou elevá-lo mais um pouco. Com exceção de Turquia e Eslováquia, que possuem expectativas de vida e sobrevida similares as do Brasil e tem idades mínimas de aposentadoria de 60 e 62 anos, respectivamente, portanto menores as que estão sendo propostas por Temer, todos os demais países possuem um acréscimo de anos médio de sobrevida acima dos verificados no Brasil. Em 2060, a projeção é que esse acréscimo vital atinge, no Brasil, os 24 anos para as mulheres e 20 anos para os homens, de acordo com projeções da ONU.

Outro dado importante foi levantado pelo Auditor federal Marcelo Perrucci. Ele aplicou o indicador HALE (Health Adjusted Life Expectancy) para traçar um comparativo da expectativa de vida com saúde do Brasil com o de outros países. Esse indicador considera a expectativa de sobrevida, de maneira mais nuançada em termos de anos com vida saudável que os indivíduos podem gozar, isto é, relativamente livre da interferência de doenças e fatores debilitantes e comprometedores da saúde e qualidade dos anos vividos. Vejamos o gráfico:

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Fonte: OMS/ONU 

O traçado em vermelho representa a idade mínima de 65 anos. A conclusão é evidente: a expectativa de vida com saúde dos brasileiros que alcançarem a aposentadoria sob as novas regras da Reforma é baixíssima. Enquanto na maior parte dos países, os indivíduos, em média, gozariam de pelo menos 6 anos e meio de uma vida relativamente saudável, os brasileiros teriam, por sua vez, com o patamar etário proposto pela PEC 287/16, incríveis 6 meses!

Em suma, após vencer as intempéries do mercado de trabalho, a mortalidade juvenil por criminalidade violenta, as doenças cardíacas e outras mazelas, os trabalhadores sobreviventes que lograrem a aposentadoria com 65 anos de idade teriam, na média, 6 meses para usufruir do benefício com saúde antes de sucumbirem a problemas debilitantes de sua qualidade de vida. Eis o futuro risonho desenhado pelo governo Temer para os brasileiros.

2. Agravamento do mal-estar social do/no trabalho

Dado as dinâmicas estruturais de precariedade do mercado de trabalho nacional, e a continuar sem transformações significativas neste, os trabalhadores mais pobres terão enormes dificuldades para alcançar os requisitos básicos exigidos pela Reforma. A precariedade das inserções no mercado formal manterá, novamente, um grande contingente de trabalhadores sem conseguir acessar o patamar mínimo para aposentadoria – nesse caso, 65 anos de idade + 25 anos de contribuição. O tempo de contribuição de 49 anos para acesso integral é, praticamente, inalcançável para esses trabalhadores. Restará, então, o benefício assistencial (BPC/LOAS) para idosos, cuja idade salta dos atuais 65 para 70 anos, com o agravante de que, pelas novas regras a serem implantadas pela Reforma, o valor do benefício poderá ser achatado a níveis inferiores ao salário mínimo, uma vez que a vinculação ao salário mínimo pode ser retirada. Novamente a comparação com a realidade dos países desenvolvidos é completamente sem sentido, pois os valores mínimos das aposentadorias deles estão bem acima dos valores atuais do Brasil e, obviamente, dos propostos na Reforma, os quais serão ainda mais  insuficientes e gritantes para atender às necessidades básicas de uma família.

Se as regras vigentes já são severas e penalizam os trabalhadores menos qualificados que padecem de ciclos de vida irregulares, as propostas da Reforma da Previdência de Temer agudizam ainda mais a vulnerabilidade social dessas camadas e potencializam os riscos de os indivíduos adentrarem num processo que o sociólogo francês Serge Paugam chama de desqualificação social, um efeito dominó de ruptura dos laços de pertencimento social. No limite, esse processo conduz os indivíduos a serem percebidos e a se autoperceberem como “inúteis e descartáveis para o mundo”. Para os demais trabalhadores, em melhores condições de alcançar os requisitos sugeridos pela Reforma, é provável, também, que tenhamos um quadro socialmente bastante perverso´. Estes estarão encurralados entre se aposentar aos 65 anos com os benefícios parciais ou, então, prolongar sua vida produtiva, sacrificando o corpo e a saúde, para além dos 70 anos para tentar acessar o benefício integral, encurtando ainda mais o tempo de usufruto da aposentadoria.

Nesse sentido, pessoas desgastadas emocional e fisicamente pelo trabalho e pela ação do tempo tenderiam, na luta pela aposentadoria, a permanecer ativas e ocupadas no mercado de trabalho, apesar de suas condições deterioradas de saúde e fragilidade da capacidade laboral. O resultado provável pode ser, com efeito, um aumento significativo de adoecimentos, sofrimentos e acidentes relacionados ao trabalho. Inevitavelmente, tal quadro afetaria a produtividade e eficiência das organizações e empresas.

Com mais pessoas tendendo a permanecer mais tempo em seus postos de trabalho, a renovação empregatícia, a inovação produtiva e o ingresso dos mais jovens sofreriam com mais um obstáculo social, estreitamente conectado às regras da Reforma da Previdência. Ou então, poderemos ter uma situação inversa, derivada da intensificação da concorrência na apropriação do conhecimento tecnológico entre os jovens e as pessoas mais velhas, de modo que a obsolescência profissional e as dificuldades de assimilar as mudanças técnicas podem engendrar o crescimento do desemprego entre pessoas com mais de 50 anos e mesmo entre idosos. Assim, um gravíssimo problema social emergiria, e com desvinculação dos benefícios assistenciais do salário mínimo, ele seria ainda destrutivo.

O tempo de contribuição para acesso parcial ou integral à aposentadoria proposto pela Reforma é outro dado que merece atenção e ser comparado com as regras de outros países:

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Fonte: Pensions at a Glance 2015

Como podemos concluir nenhum país dos listados acima, alguns com idade mínima superior aos 65 anos, como a Irlanda, exige um tempo para acesso integral tão longo quanto o sugerido pela Reforma da Previdência do governo Temer. Inclusive o período de 25 anos de contribuição como condição de acesso parcial é consideravelmente alto em comparação ao tempo mínimo praticado em outros países, superado apenas pela Argentina que requer 30 anos. Um trabalhador ou trabalhadora que ingressasse, por exemplo, aos 20 anos de idade no mercado formal, e conseguisse a proeza de manter-se ininterruptamente contribuindo para previdência ao longo de 49 anos, somente se aposentaria com o benefício completo, aos 69 anos. No gráfico abaixo, podemos ver, mais uma vez, a disparidade em relação a outros contextos nacionais.

 

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Fonte: Pensions at a Glance 2015

3. Desigualdade de gênero

O estabelecimento da idade mínima para homens e mulheres afeta, inevitavelmente, o problema da desigualdade de gênero. Equiparar homogeneamente as regras de aposentadoria entre homens e mulheres significa desconsiderar as diversas assimetrias e particularidades sociais de gênero que conformam não apenas o mercado de trabalho, mas as relações sociais e a vida em geral na sociedade brasileira.

O pseudoargumento de que a tecnologia e as mudanças socioculturais nas últimas décadas esbateram as diferenças significativas entre homens e mulheres no mundo do trabalho e nas atividades domésticas é um completo desconhecimento da realidade. Além das assimetrias salariais, que tornam o rendimento-hora entre mulheres e homens desigual tanto nas atividades de menor escolaridade e qualificação quanto, sobretudo, naquelas que exigem maior tempo de estudo e qualificação, as mulheres continuam a arcar com a maior parcela dos afazeres domésticos, sejam os cuidados com a casa, sejam os cuidados com os filhos. O desdobramento desse desequilíbrio na divisão do trabalho doméstico é que as mulheres acabam por ter uma jornada total de trabalho superior a masculina em cerca de 5 horas semanais – em um ano, isso equivale a 260 horas a mais, em uma década 2.605 horas a mais de trabalho na jornada total.

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Como podemos observar, a jornada feminina com as atividades domésticas é o dobro da masculina. Nesse sentido, para as mulheres, a tarefa de ajustar os tempos livre e de trabalho é uma atividade difícil e desgastante, com repercussões diretas em seu bem-estar e qualidade de vida. Não por acaso são elas as principais vítimas de doenças crônicas (hipertensão, diabetes, câncer) incapacitantes para o trabalho.

Conclusão

O estabelecimento da idade mínima aos 65 anos está repleta de contradições, quando analisado à luz de dados comparativos internacionais e dos indicadores sociais brasileiros. O reduzido tempo de usufruto do benefício, a intensificação do mal-estar do trabalho e a desconsideração da desigualdade de gênero são algumas dessas contradições nocivas da regra em questão.

Nesse mote da idade de referência, é um enorme engodo se orientar por países como Alemanha, Áustria, Suécia e Dinamarca quando, na verdade, nossa realidade socioeconômica está bem mais próxima da Índia, Turquia, África do Sul e Eslováquia. Mais do que um engodo ou equívoco de contextualização. É uma atitude de má-fé política e social, porque toma-se o exemplo dos países desenvolvidos de maneira enviesada, seletiva e interessada. Quando se trata de impor o ônus à população, a direita brasileira adora se mirar na comparação com os países ricos e suas políticas de austeridade.. Porém, quando se trata dos benefícios e direitos cultivados e mantidos pelos países ricos para a sua população, essa direita se cala, e os países ricos e desenvolvidos já não servem mais como referência, exceto como paraísos distantes.

A Reforma da Previdência é mais um decisivo passo no processo de desmantelamento do pacto firmado com a Constituição de 1988 com respeito a proteção e bem-estar social. Representa o aborto do pacto e concepção de Estado que ainda estava sendo materializado efetivamente no país. A agenda de austeridade do “novo regime fiscal” está criando um novo modelo de Estado, mais voltado para a sua própria saúde financeira (para os interesses de quem?) do que para o bem-estar e cidadania.

Ao instituir reformas das quais uma porção restrita de alguns milhares de pessoas e organizações se beneficia com bilhões ao passo que milhões de pessoas e famílias sentirão o peso do ajuste e do enfraquecimento da proteção social, o governo Temer pavimenta o caminho para a restauração do Estado de mal-estar social no Brasil. É preciso entender que a Reforma da Previdência é mais do que uma questão fiscal. Ela é, também, uma questão política acerca do tipo de Estado que almejamos, assim como trata-se do valor que atribuímos a solidariedade social e a necessidade de existência de um espaço sólido de segurança social enquanto bens civilizatórios capazes de amparar os indivíduos contra as consequências da desigualdade, do mercado, das doenças e da ação do próprio tempo sobre a saúde e a capacidade laboral. É exatamente o consenso acerca desse espaço de segurança e amparo social autônomo, que autores como Karl Polanyi e Robert Castel tanto enfatizaram em suas obras como imprescindível contra as impiedosas e devastadoras “leis” da economia de mercado, que está sob cerrado ataque e incerteza no país.

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[i] Benefício Assistencial de Prestação Continuada (BPC) e Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS).