Ontem até que acordei feliz e pensando em bichinhos de estimação. Sei lá, talvez tenha sido inspirado pelos três adoráveis filhos caninos que tenho. Ou quem sabe por algum estímulo causado por aquela série do Netflix na noite anterior – sim, havia um cachorro! Enfim, dei asas ao pensamento e deixei minhas lembranças fluírem. Lembrei de vídeos engraçados do youtube, envolvendo animais domesticados e selvagens. Lembrei dos cachorros pianistas, dos macacos astuciosos, dos gatos endiabrados e – pasmem – das “cabras desmaiadoras”.
Sim, isso mesmo, eu disse “cabras desmaiadoras”. Também conhecidas como “cabras miotônicas” (ou “cabras do Tennessee”), esses animais possuem uma doença hereditária conhecida como “miotonia congênita”. Essa doença tem um efeito curioso: caso o animal se assuste, ele sofre uma paralisação temporária (e indolor) dos músculos. Isso mesmo: basta dar aquele sustinho, que a cabra cai, imóvel. Não acreditam? Vocês podem conferir aqui https://youtu.be/AnVv0RkiG4U. Mas o que isso tem a ver com política e, muito menos, com o atual cenário político brasileiro? Explico.
Logo após os pensamentos felizes do despertar, ainda influenciado pelo subconsciente, o dia de fato começou. Então, lembrei que tinha de me aprontar para uma entrevista sobre a educação pública, sobre a greve do IFRN (instituição em que trabalho), sobre a perda de direitos para a classe trabalhadora etc. Enfim, fiz minha parte e participei da entrevista, na companhia de dois excelentes amigos e colegas de trabalho. Um nervosismo inicial aqui, uma palavrinha engasgada ali (foi minha primeira vez, afinal!) serviram para me ajudar a despertar ainda mais para a realidade: era o dia de votação da famosa PEC 55. Enfim, já mais à vontade, concluí a entrevista prometendo voltar (imaginem só!). Mas a imagem das cabras não saía de minha cabeça. “O que elas estão tentando me dizer, afinal!?” – perguntava eu. Após um “tempinho generoso” de reflexão – sou professor de filosofia –, acabei me dando conta do significado daquelas imagens: na verdade, eu estava me sentindo como uma daquelas “serumaninhas”. Mas não parou por aí: essa conclusão se estendeu a outras pessoas. Na verdade, se estendeu a nós, enquanto corpo político.
Como sabemos, o texto da PEC 55 – que limita os “gastos” públicos por 20 anos e que, por causa disso, prejudicará investimentos em saúde e educação – foi aprovado ontem (13/12/2016) sem modificações, por 53 votos a favor e 16 contra. Considerando o tamanho do prejuízo para a grande parte da população brasileira, era natural se esperar manifestações gigantescas por todo o país. Ainda mais se levarmos em consideração todo o contexto político que levou à aprovação dessa perigosa emenda constitucional.
Afinal de contas, com a visível demonstração do golpe parlamentar, jurídico e midiático; com a clara degeneração da relação de harmonia entre os poderes; com a revelação gritante de que não há qualquer constrangimento em se mostrar um juiz, encarregado da lava-jato, confraternizando com investigados pela própria lava-jato; com o Presidente do Senado sendo impedido de permanecer na linha sucessória da Presidência da República, ao mesmo tempo em que se mantém Presidente do… Senado!?; com a reforma da previdência que, além de incentivar a contribuição para fundos privados de previdência (e, a exemplo dos EUA de 2008, nada seguros), transformará os futuros requerentes de aposentadorias em múmias ou, provavelmente, em fantasmas; enfim, com tudo isso acontecendo, pergunto: por que estamos vendo isso tudo sem esboçar a necessária reação de resistência – isto é, uma IMENSA reação de resistência?
É claro que há insatisfação e que há diversos protestos ocorrendo pelo país. Mas sejamos francos: nenhum deles se compara às manifestações de junho de 2013 – isso mesmo, aquelas que receberam empurrõezinhos das “pessoas responsáveis”, no clássico sentido pretendido por Lippmann. O que aconteceu? Por que, enquanto corpo político, estamos tão inertes?
E é por causa disso que me lembro das cabras: em certa medida, estamos reagindo aos golpes; porém, também em certa medida, estamos quase paralizados – ao menos de modo geral, enquanto corpo político. Agora, talvez mais até do que em 2013, há motivos de sobra para se empurrar uma verdadeira reforma política. Há motivos de sobra para tomarmos as ruas e resgatar aquela insatisfação. Mas é justamente nesse momento que nossa sociedade assiste a tudo isso quase que paralisada, dividida, sem esboçar a reação necessária de resistência às injustiças e violações ao pacto republicano de 1988.
É claro, qualquer fenômeno social é demasiadamente complexo para se pensar em termos positivos, isto é, através de relações simples de causa e efeito. Uns dirão que é culpa da mídia corporativista, elitista, oligárquica e golpista de nosso país. Outros atribuirão a culpa aos grandes empresários egoístas, sonegadores de impostos, adoradores de patos e corruptos; outros, ainda, dirão que é culpa dos hipócritas defensores da suposta “família” – essa entidade eterna, una, imutável, imaculada e transcendental, em nada dependente das condições históricas e socioculturais de cada povo.
Mas a mera atribuição de culpa, isto é, aquela que serve como recurso psicológico de auto-consolo, é o mais fácil para aqueles que já admitiram que não há nada a fazer. E quando digo “a fazer”, me refiro a consolidar o projeto democrático e socialmente justo no qual acreditamos; aquele preconizado pela Constituição Federal de 88 – projeto que, ao que parece, estão querendo enterrar.
Sem qualquer desrespeito às cabras – elas são muito fofas! –, eu diria que agora é o momento de nos comportarmos mais como lobos – isto é, ancestrais dos cachorros (está bem, sou parcial!) e que trabalham em prol do bem da alcateia, ou seja, em prol do bem comum. Assim, faço um apelo aos leitores: nem PEC 55, nem cabras desmaiadoras, mas lobos! A partir de agora, que o povo seja o lobo dos violadores da democracia e da justiça social!
* Imagem da cabra sorridente retirada de <https://thesmilefiles.files.wordpress.com/2011/11/smiling-goat13.jpg>. Acesso em 14/12/2016.
* Imagem de um espécime de cabra desmaiada, retirada de <http://www.diarioinsano.com.br/2010_12_01_archive.html>. Acesso em 14/12/2016.