No primeiro dia de aplicação do ENEM 2016, #showdosatrasados ultrapassou a marca de 300 mil menções no twitter.
No primeiro fim de semana deste mês (05 e 06) foram aplicadas, em todo Brasil, as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Para parcela significativa dos inscritos no exame, a realização das provas se constitui como a porta de entrada para o ensino superior público, ou em alguma instituição de ensino privada, seja através de políticas públicas de financiamento, como o FIES, ou da obtenção de bolsas de estudos, através do Prouni. Diante deste acontecimento nacional, programas de televisão, sítios eletrônicos informativos e majoritariamente internautas se uniram em torno da hashtag showdosatrasados. “Estava demorando… Agora é a hora que o chato começa a implicar com as piadas alheias”, pensa o leitor que passou boas horas se divertindo à custa dos candidatos atrasados. Deste modo, vale pontuar que a intenção deste texto não é demonizar aqueles que fizeram humor com baixo teor de criticidade e com o sofrimento alheio. Por vezes, apenas reproduzimos afirmações (ou piadas) e não tecemos nenhuma reflexão a respeito. Acontece todos os dias. Por este motivo, o presente texto é um convite à reflexão acerca daquilo que os memes e as piadas sobre os atrasados não mostram, e pior, escondem.
Lembro-me de, em alguma palestra, ter escutado a urbanista brasileira Ermínia Maricato falar sobre as diversas formas como os sujeitos experimentam as cidades. Os centros urbanos, geralmente apontados como espaços estressantes, não são igualmente estressantes para todos que neles vivem. Enfrentar horas de trânsito dentro do seu automóvel é bastante diferente de suportar a mesma situação em um ônibus lotado. Conseguir ser pontual também é uma tarefa bem mais simples para aqueles que não dependem do caro e precário “transporte público”. Isto para não entrar no mérito da atuação dos agentes de segurança e das facções criminosas nos diversos bairros, do fenômeno dos condomínios fechados e da segregação socioespacial, que produz uma linha divisória entre os centros e as populações com maior poder aquisitivo e as periferias e os setores populares. Trocando em miúdos, a depender da posição de classe dos sujeitos, estes estão mais ou menos expostos ao estresse que permeia as grandes e médias cidades brasileiras, bem como terão uma experimentação diferenciada do espaço em diversos aspectos. Mas o que isso tem a ver com os atrasados do ENEM? E com as piadas endereçadas a eles?
O processo de espetacularização e chacota dos candidatos que chegaram atrasados nega, ou pelo menos esconde, os obstáculos que circundam a mobilidade de vários candidatos nas cidades. Por si só, o modelo de mobilidade urbana centrado no transporte individual já produz um enorme problema para todos os candidatos das cidades grandes e médias: o trânsito nos dias de realização das provas. Se a situação já é problemática para os candidatos que se locomovem até os locais de prova em automóvel particular, imagine para aqueles que têm como única alternativa o lotado, atrasado, estressante e lento busão. Aos desavisados, vale lembrar que em várias cidades do Brasil, inclusive Natal, de onde escrevo, a frota de ônibus é reduzida durante os fins de semana, e pela demanda de pessoas que necessitavam do transporte nos dias de realização do ENEM, os ônibus paravam em quase todos os pontos, tornando o percurso ainda mais lento.
As piadas, os memes, as risadas, e todo o processo de espetacularização que foi construído sobre os “atrasados” escamoteiam os limites da cidade desigual e centralizam o motivo dos atrasos unicamente nos indivíduos “atrasados”. Mais uma vez, o ideário meritocrático revive em cena: a culpa pelo fracasso e o sucesso do mérito são unicamente do sujeito, não há fatores externos que influenciam nestes resultados. Diante deste ideário, que naturaliza a realidade social, ou seja, mascara que transporte público e a desigualdade social, por exemplo, são o resultado da ação humana e que, portanto, não são imutáveis, não cabe repensar o modelo de cidade predominante no Brasil: uma cidade para os carros; não cabe problematizar os limites da mobilidade urbana; nos cabe apenas rir, achar graça. Mesmo que essas questões também afetem nossas vidas.
E por falar em meritocracia, a hashtag showdosatrasados também evoca uma série de piadas que deixam evidente a classificação das profissões, entre aquelas de maior e menor prestígio social. Um reflexo cruel de uma sociedade em que, apesar do processo de expansão universitária da última década, o diploma acadêmico ainda se constitui como um símbolo de poder. Em certo momento do filme “Amarelo manga”, dirigido por Cláudio Assis, uma personagem afirma que “no Brasil, um carro vale mais que o caráter”. Um carro e um diploma de nível superior, então…
As piadas sobre os “atrasados do ENEM” ditas neste ano, que também foram ditas no ano passado e que, provavelmente serão ditas no início de dezembro[1] e no próximo ano me fazem lembrar do pensador italiano Antonio Gramsci, que ensinou, ainda no século passado, que as ideias da classe dominante atravessam todas as camadas socais e ganham ares e corpo de senso comum, fazendo com que os cidadãos tenham uma leitura fragmentada e parcial da realidade. Este texto, como dito anteriormente, é um convite à reflexão, a um outro modo de perceber algumas das tensões que permearam a realização do ENEM deste ano e, por fim, uma tentativa de ruptura com o pensamento hegemônico. Aos candidatos que venceram as armadilhas postas no fim de semana de aplicação das provas, parabéns. E a todos cidadãos, em especial aos futuros participantes – inclusive os que perderam o exame neste ano e os que farão a prova em dezembro–, desejo uma cidade melhor para todos e todas, mas como talvez isto não seja possível em um futuro próximo, também desejo mais cuidado para não se perderem nos labirintos da cidade desigual.
[1] Excepcionalmente este ano, uma parcela significativa dos candidatos realizará o ENEM no início de dezembro.