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Quando ouço a palavra “cultura”, saco o meu revólver

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Que me perdoem os guardiões do que se chama tradição. Mas parece existir qualquer coisa de estúpido e infantil em nossa história (des) humana, que, vez por outra, tentamos justificar. Talvez seja porque tudo que é fundado no barro , seja suspeito, é que voltamos nosso olhar para o herói varonil; enfrentando monstros e toda sorte de desafios propostos pelos deuses.

Gosto de esportes (apesar de não ser muito adepto). Da marcha atlética ao Curling* é onde pomos a prova nossos limites e, talvez, onde o barro se assemelhe mais a imagem do criador. E é por gostar de esportes que apoio a decisão do supremo, em tornar a prática (des) humana, da vaquejada, ilegal.

Seus defensores afirmam que a vaquejada faz parte da cultura sertaneja há, pelo menos, cem anos. Concordo. Da mesma forma como animais eram imolados há cinco mil anos para agradar a toda uma variedade de deuses, e que também denominamos cultura (aliás, esse um termo bastante abrangente, onde muitas coisas são justificadas em seu nome, e que, em casos assim, sempre me faz lembrar uma frase que muitos creditam ao chefe da polícia nazista Herman Göring, “Quando ouço alguém falar da palavra cultura saco o meu revólver”** ). Afirmam ainda que as vaquejadas são importantes fontes de lucro para o município. Também concordo. Do mesmo modo como senhores escravagista, ainda na virada do século XIX para o século XX, lamentavam suas perdas “Quem é que vai cuidar dos nossos cafezais?”. E mesmo hoje, passados 128 desde a lei áurea, as plantações de café estão aí, os senhores continuam senhores, e os escravos, escravos.

Atletas, às vezes, podem sentir a tensão de uma competição importante; a pressão da torcida adversária, aquele friozinho na barriga. (E, por que não, amarelar?) Bois quando dentro do brete*** , são açoitados; indo de uma sequência de choques a pauladas. Com o aditivo da pimenta introduzida no ânus.

Pode até não parecer, mas ali, na cauda do boi, existe uma sequência de vértebras, que em alguns casos, em decorrência da brutalidade da queda, é arrancada. Assim como também há sofrimento na descorna (cerra dos chifres do boi), feita geralmente sem anestesia nestas festas; chegando a atingir alguns vasos, e, não raramente, o sangue escorra.

Por isso acho estranho que o senador, Roberto Muniz (PP-BA) diga em seu discurso, que o vaqueiro derruba o animal e o trás com muito carinho. Tudo bem. Somos predadores assim como o lobo mal. Nossos dentes são afiados, prontos para rasgar e triturar a carne. Nossos olhos, diferente de nossas presas, estão postos em nossa fronte, de modo que nos dê um ângulo objetivo de visão, e assim, observemos melhor nossas vítimas.

12122493_719733134827226_612183896631180542_nFoi o próprio Deus que nos deu a licença para matar, assim como Madame M. deu a James Bond. Temos o domínio sobre todos os peixes do mar. E sobre as aves do céu, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se mova sobre a terra. (Gênesis 1:26-29). Mas há nisso tudo um sentimento atávico de circo a guisa do sofrimento alheio. Um gosto por sangue. Da rinha aos rodeios, exemplos não faltam nossa história. Que hoje chega também em nossa casa via controle remoto. Como o que proporcionou aos seus telespectadores o modelo e apresentador Rodrigo Hilbert, na estreia de seu programa, em março deste ano, “Tempero de família”.

Na ocasião, o apresentador, sem o menor constrangimento, arranca um bezerro, ainda mamando no peito da mãe, para virar churrasco. “Porque o leite ingerido, deixa a carne mais macia”, explicou um pecuarista, que acompanhava o apresentador. Além dos mugidos do animal, o público foi agraciado com o sangue que caia aos borbotões numa bacia, aos golpes de facas, exibidos gratuitamente no ar. “É como rasgar um sofá”, disse um surpreso Hilbert.
Desde 2010, a cidade da Catalunha, na Espanha, suspendeu as touradas. Exemplo esse seguido por outros dezessetes cidades espanholas, que deixaram de patrocinar a tradicional tourada de Pamplona, bem como sancionaram leis que advertem, multam ou predem quem maltrata os animais. E dia 01 de novembro, do ano de 2016, o nosso senado, em um projeto de lei do Capitão Augusto (PR-SP); pertencente à bancada BBB (Boi, bíblia e bala), aprova a vaquejada, como patrimônio cultural, numa tentativa de reverter à decisão do supremo.

“Por que escrever sobre um tema como esse, quando o país inteiro atravessa uma grave crise?” Perguntaram-me. Confesso que não soube responder. Talvez tenha sido acometido por uma espécie rara e perigosa de loucura**** ; dessas que fazem um homem chorar abraçado ao pescoço de um cavalo, pedindo perdão.

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*Curling é um esporte praticado nas olimpíadas de inverno, onde um dos atletas arremessa uma pedra de granito que desliza no chão, e seus companheiros varrem o chão para que a pedra diminua o atrito com o gelo.

**  Na verdade a frase é de uma peça antinazista do dramaturgo  Hanns Jost (1890 -1978), encenada quando Hitler assumiu o poder em 1933.

*** Cercado de madeira, onde o boi espera até ser solto e correr na faixa dos dez metros.

*****Em 1890, em Turim, na Itália, o filósofo Friedrich Nietszche colocou-se em frente a um cavalo, que era açoitado por um cocheiro, abraçando-o. O “colapso” foi o início da derrocada do filósofo, que a partir daquele momento em diante, passou a viver de sanatório em sanatório, produzindo palavras “ininteligíveis”, até sua morte, dez anos depois.