Especial para a Série “Da Correção Política à Censura”
O conceito de Literatura já sofreu inúmeras mutações desde a Antiguidade. Desenvolvemos e acumulamos teorizações diversas em relação a sua essência e a sua função, incluindo a possível inexistência da última. Ao longo dos séculos, ela foi vista como espelho da Natureza, como algo que deveria agradar e instruir (ou, quem sabe, só agradar), meio de glorificação da doutrina cristã, microcosmo criado pelo poeta e até como criação totalmente desconectada de qualquer função pedagógica ou moral, justificada por si mesma. Porém, em todas essas teorias, mesmo quando se fala na arte pela arte, a literatura ainda é uma maneira de dar forma ao que somos e pensamos. Ela é, por meio da ficção e do trabalho meticuloso com as palavras, expressão de culturas, povos, épocas e, também, do universal. Dá forma ao informe, nome ao que ainda não conseguimos nominar.
Mas, nos dias de hoje, estamos vivenciando tamanha dominação dos ideais politicamente corretos ‒ válidos em algumas situações, mas também suscetíveis a muitos exageros ‒ que estes já adentraram, não só nos corredores universitários de todo o mundo como também na crítica da Arte e da Literatura. Politizando-se, os critérios intelectuais no estudo das artes passaram a segundo plano. Dessa forma, tenta-se primeiro detectar na obra a cor da pele, a etnia, a opção sexual, a misoginia ou qualquer outro vestígio de preconceito contra minorias. Estes critérios, secundários nas obras, estão ganhando vulto gigantesco, rebaixando a discussão de aspectos verdadeiramente intrínsecos à arte à quase exclusão. Como resultado, vemos a constante tentativa de coibir, com a anuência dos governos, qualquer verbete/expressão/obra que tenha os mais leves sinais de preconceito, desconsiderando sua importância como obra de arte em si, seu contexto histórico-cultural e sua relevância para cada cultura em detrimento de julgamentos políticos.
Este foi o caso da “Divina Comédia”, um dos maiores patrimônios culturais da Itália e do mundo. (Não que a iniciativa tenha partido, necessariamente, de especialistas da literatura. Não sabemos exatamente quem são os componentes da ONG responsável pela polêmica. Mas há, certamente, influências de mão dupla entre a crítica literária e a sociedade.) A “Comédia” é a síntese da era medieval traduzida em poesia. E, além do seu relevo cultural e poético, foi com ela que Dante Alighieri ajudou a dar forma a própria língua italiana. Dado seu caráter universal, ler esta obra significa conhecer o que fomos e o que ainda somos. Parte de seus valores morais e sua cosmovisão, para muitos de nós, não fazem mais sentido. Mas, ainda assim, nos fazem entender nosso passado e um pouco do nosso presente. Não só isso: a obra guarda sua genialidade naquilo que é universal e poético. Oferece também o deleite pelas mais belas imagens criadas por um gênio.
Tudo isso vem sendo ignorado por aqueles que se entregam a essa onda de politização da crítica da arte. Os fatores anacrônico e ficcional também são atropelados. Ao invés de buscarem o caminho da instrução e do esclarecimento, tentam o esdrúxulo cerceamento da obra. A melhor alternativa seria, na verdade, a de mostrar, além da característica ficcional, que certos preconceitos fizeram parte do nosso passado e que não devem perpetuar no nosso futuro. Beira o absurdo querer privar os alunos das escolas italianas ‒ pessoas em plena formação intelectual ‒ da maior obra literária que seu país já produziu. O prejuízo, nesse caso, é imenso para a grande maioria.
Obra literária alguma deve ser submetida à censura. A literatura não formula nem defende preceitos. Ela simplesmente apresenta ideias e situações possíveis, sejam elas boas ou más. Porque não se trata de exprimir e dar a conhecer o certo, mas, sim, o verossímil. Ao leitor, como disse o escritor Gustav Flaubert, cabe retirar de “um livro a moralidade ali presente”. E mesmo essa moralidade poderá variar de um leitor para outro, ou, até mesmo, de uma leitura para outra. A obra literária não quer convencer ninguém a nada. Agora, cabe a nós, educar e instruir naquilo que acreditamos ser o certo. Não por meio da censura, mas sim do incentivo ao conhecimento e à reflexão. Coisas que, diga-se de passagem, a própria literatura estimula, ampliando imensamente nosso horizonte.
Entenda a Série: Da Correção Política à Censura