Astronautas chegam a um planeta parecido com a Terra com a missão de povoá-lo e recriar a humanidade a partir do zero. Mas ao invés de se tornarem livres, repetem, numa versão caricata e sombria, as mesmas mazelas que deixaram na Terra: a religião, guerras santas, hierarquias, violência e o hedonismo das drogas alucinógenas. Muitos críticos consideram o filme polonês “On The Silver Globe” (“Na srebrnym globie”, 1988) um “Star Wars com LSD”. Censurado pelo regime comunista polonês em 1977, o diretor Andrej Zulawski conseguiu finalizá-lo em 1988, mesmo com a filmagem incompleta. Para solucionar o problema, o diretor transformou o filme em um “found footage”. Por isso, as duas horas e meia do filme são para espectadores curiosos e corajosos: Zulawski faz um mergulho caótico e lisérgico no psiquismo de astronautas que tinham tudo para serem livres. Mas apenas contaminaram aquele planeta com a “peste” que trazemos em cada um de nós.
Muito antes da atual onda dos filmes found footage (filmes cuja narrativa se baseiam em um suposto dado como perdido e encontrado) a partir de A Bruxa de Blair, em 1975 o diretor polonês Andrzej Zulawski iniciava a produção do sci fi On The Silver Globe (1988).
Metade da narrativa baseia-se em um vídeo diário de bordo de uma missão enviada a um planeta bastante parecido com a Terra. Depois de algum tempo, o vídeo é enviado de volta para a Terra, enquanto a tripulação ficou no planeta para povoá-lo.
Foram dois anos de produção, filmado em diversas locações como o litoral do Mar Báltico, Deserto de Gobi na Mongólia, nas montanhas do Cáucaso, entre outros locais. Quando 80% do roteiro estava produzido, o Ministério da Cultura polonês sumariamente suspendeu as gravações acreditando que o filme era uma alegoria da situação política no país naquele momento.
Foi ordenado a destruição do material: rolos de filmes, cenários, figurinos, roteiro, tudo! Atores e técnicos conseguiram esconder algum material das filmagens em suas casas, enquanto o diretor fugiu para a França carregando o filme incompleto.
Com o fim do regime comunista, em 1988 Zulawski teve a oportunidade de finalizar o filme. Mas alguns atores e membros da produção já tinham falecido. Com muitos gaps e sequências não concluídas, Zulawski teve uma ideia genial: tratar o próprio filme como um found footage, fazendo comentários nos espaços não conclusos da narrativa – em off, o diretor didaticamente explica como deveria ser a sequência, conseguindo fazer as conexões perdidas na estória.
Sangue, perdas e loucura
Adaptado da chamada “Trilogia Lunar” do escritor polonês Jerzy Zulawski (tio do diretor), o filme foi nomeado pela crítica como um “Star Wars com LSD”. Das quatro horas previstas, ficaram duas horas e meia de uma épica e alucinógena narração de como astronautas, ao tentar povoar um planeta desértico, criam uma nova ordem de rituais, costumes e uma religião que em tudo amplifica o que de pior foi deixado na Terra.
Na medida em que mais e mais crianças nascem e crescem (e, por algum motivo, a atmosfera do planeta faz as crianças crescerem muito mais rápido do que na Terra) as relações entre as pessoas ficam instáveis. Na verdade, confinadas no limiar entre a agressividade e o transe religioso e místico.
Acompanhar a narração de On The Silver Globe requer do espectador muita determinação e espírito de curiosidade – é um filme daqueles que está além da dualidade gostei/não gostei. Decididamente, é um filme estranho, repleto de sangue, perdas, loucura e constantes indagações filosóficas como fosse alguma coisa de Jean-Luc Godard ou Jodorowski elevada ao cubo.
O filme é um verdadeiro desafio imagético, com dezenas de cenas indeléveis, cujas composições visuais são intrigantes, surreais e perturbadoras – como, por exemplo, a sequência de dezenas de homens empalados em altas estacas à beira do mar ou da desolação das sequências filmadas no deserto de Gobi.
Mas On The Silver Globe também é um alerta: para quê sairmos do nosso planeta para explorar e colonizar o Universo? No final, transformaremos outros mundos em projeções cada vez piores do que deixamos na Terra.
O Filme
Vamos tentar fazer uma compreensível sinopse que ajude aqueles leitores que se aventurem nas duas horas e meia do filme.
Um grupo de astronautas deixa a Terra para povoar novos mundos e encontrar a Liberdade e a Verdade. A nave acaba caindo em um planeta desconhecido com um ecossistema parecido com a Terra. Equipados com uma filmadora, gravam sua chegada ao litoral de um grande mar, ondem constroem uma vila.
Depois de muitos anos, o último remanescente da tripulação é Jerzy que testemunha o crescimento de uma nova sociedade baseada em contos míticos sobre uma expedição que veio da Terra e deu origem a tudo. Jerzy é nomeado como “O Ancião”: é considerado por todos uma espécie de Semi-Deus – tratam-no como o sábio demiurgo que tudo fez.
Antes de morrer, Jerzy consegue enviar o velho vídeo gravado pela sua tripulação para a Terra por meio de um foguete.
Outro astronauta chamado Mark é enviado para o planeta. Quando chega é recebido pelos padres e sacerdotes como um Messias de uma antiga profecia: aquele que irá livrar a aldeia dos “Sherns”, os antigos habitantes daquele planeta – eles parecem pássaros em formato humanoide, com vestimentas sujas e escuras.
Rapidamente Mark é contaminado pela atmosfera de delírio e paranoia e começa a acreditar ser mesmo um Deus. Organiza um exército para liderar a travessia do mar para chegar invadir a cidade dos Sherns e exterminá-los.
Mas aumenta a descrença entre alguns padres em relação ao status divino de Mark: começam a acreditar que ele, na verdade, foi expulso da Terra e jamais foi o Messias da profecia.
A “peste”
A primeira tese que o filme levanta é: não importa para onde o homem vá no Universo, trará consigo a “peste”: o niilismo, o vazio, ou, nos termos colocados pelo Existencialismo, o medo da liberdade. O fato de estar sozinho no Universo, de nada ter sentido e de que, por isso, é livre para fazer qualquer coisa é desesperador para o homem.
É esse pânico que os astronautas levam para aquele planeta. Lá encontram “selvagens” habitantes : os “sherns” e uma espécie de nômades indígenas. Em paz consigo mesmos, veem a chegada dos humanos que criam no planeta uma versão caricata das mazelas que deixaram na Terra: a religião e o messianismo.