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A que e a quem serve a militância acadêmica contra o marxismo e contra a análise da ideologia?

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Por Alípio de Sousa Filho

(Cientista social e professor da UFRN).

I

O texto que segue talvez seja considerado, por muitos, algo longo para um espaço em web como a Carta Potiguar. Mas talvez seja também necessário quebrar a ideia corrente que, “na internet, tudo tem que ser curto, rápido”, o que, a meu juízo, vem deixando muitas pessoas preguiçosas para a leitura, cada vez mais com suas subjetividades colonizadas pela ideia do fast-food do pensamento, sem que queiram mais saber dos textos longos, complexos, que requerem a paciência do pensar. Bem, escreve-se para quem gosta de ler! E, de todo modo, a web hoje já é também espaço onde estão todos os textos que são publicados nos periódicos universitários… Aqui, dentro também da proposta da Carta Potiguar de promover a reflexão e o debate teórico-político-público das ideias, apresento este meu com todo o jeito de artigo acadêmico.

Não sou marxista. Hoje, engajo-me na formulação da ideia de uma teoria construcionista crítica, propondo entendê-la como uma teoria de base ou fundamento das ciências humanas, que veio se constituindo pouco a pouco, mas desde o nascimento destas com seus primeiros estudiosos, no século XIX, e em contínuo desenvolvimento e aplicação até nossos dias. Uma teoria ou um modo de teorização sobre a realidade histórico-social que proponho entender como tendo constituído toda uma vocação crítica nas ciências humanas, para além de todas as divisões teóricas, áreas, correntes de pensamento. Igualmente, sugiro que, nessa constituição de uma teoria construcionista crítica, foi também se constituindo uma forte perspectiva desconstrucionista como um olhar sobre a realidade, e, assim, simultaneamente, vamos ter o que se pode também conceber como um desconstrucionismo filosófico, antropológico e sociológico, como efeito epistemológico e metodológico diretamente saído da visão construcionista crítica.  Entre as correntes de pensamento que destaco como constituintes dessa teoria, em fecunda ação no nosso campo, situo o materialismo histórico ou marxismo. Acabei de defender tese sobre o assunto, como requisito para ascensão à categoria de Titular em sociologia na UFRN.

karl-marx-ageing  Mas, enquanto sugiro que o marxismo é uma teoria crítica que legou importantes categorias e modos de análise a essa disposição construcionista crítica nas ciências humanas, tornando-se um dos pilares da ideia que concebe a realidade como construto, coisa construída, outros há, nas universidades, que veem o marxismo como estorvo “estruturalista”, essencialista, racionalista e inflexível em sua pretensão a ser um pensamento crítico. Mas, para isso, precisam transformar o marxismo no que ele não é: um dogmatismo e uma visão sectária e doutrinária por conceber a existência do que o marxismo chamou ideologia, desde Marx, descrita por este como um fenômeno social cuja propriedade que lhe é mais intrínseca é ser as “ideias da dominação”, no sentido de uma descrição daquelas ideias que se tornam a naturalização e eternização da realidade social e histórica. Para Marx, a ideologia não é a opinião do adversário, mas um fenômeno social. E, quando o descreveu, apontou como algo capaz de produzir a autonomização da realidade, relativamente à sociedade e aos seus agentes, no sentido de tornar a realidade construída e instituída como algo que não seria os próprios seres humanos que a teriam produzido, mas outras forças e agentes. Esse entendimento de Marx em nada difere, por exemplo, da concepção de Émile Durkheim, um dos criadores da sociologia no século XIX, quando também concebe a sociedade como eivada de um simbolismo que faz que a realidade construída pela ação humana apareça aos seres humanos como independente de suas ações. Nem difere do que o antropólogo Lévi-Strauss concebeu como uma ordem dentro da ordem, como chamou uma “ordem oculta” dentro de uma “ordem visível”, nunca estando nenhuma delas no mesmo nível de inteligibilidade para os indivíduos de uma dada sociedade.

Mas isso só pode enxergar os que não fazem leitura de má-vontade dos autores, muitas vezes colocados em oposição, pelo infeliz sesto acadêmico denunciado por Edgar Morin como a prática das “disjunções” teóricas ali onde se deveria buscar junção, ligação, síntese. Mas, nas universidades, há muitos professores que preferem exercer o papel de ventríloquos de verdadeiras seitas do pensamento, incapazes de mudar o seu pensamento inquisitorial e divisor de ideias e autores que, no sentido mais profundo de seus modos de pensar, caminham juntos ou que podemos pôr a caminhar juntos. Exercício de criação que deveria ser assumido por todos nós, o de produzir sínteses e junções onde parece só existir diferenças e disparidades, mas que poucos se arriscam, alguns por colonizados pelo complexo de vira-lata ou constituídos como sujeitos da maldição de Malinche, sujeição ideológica que os fazem acreditar que, sendo incapazes, inferiores ou de “lugares improváveis”, não podem ousar “filosofar”, pois, como vomita a ideologia colonizadora, “só se pode filosofar em alemão”! A esse propósito, ensino aos meus alunos, na UFRN, bem no alto do Nordeste brasileiro, que resistam a toda sujeição ideológica, a toda sujeição, enfim, e principalmente àquela que pretender fazê-los acreditar que “o mal-assombro é maior do que eles”. E que não aceitem o rebaixamento de si por nenhuma máquina colonizadora, ainda quando apareçam com o verniz do intelectual e do acadêmico, mas que mais não são que puras reproduções de relações de poder, sujeição, para a “glória” dos mesmos e das mesmas. E mesmo quando praticadas por tipos que se apresentam como engajados na “descolonização”.

De volta ao assunto do marxismo e da ideologia, o antropólogo Roberto DaMatta, ao apresentar a edição brasileira de “As formas elementares da vida religiosa”, de Émile Durkheim, definiu o que ali o autor escreve como sendo “um tratado sobre a natureza social da ideologia”. O que demonstra, para os que sabem ler, que o assunto da ideologia não é exclusivo de marxistas. Por que é importante tratar de ideologia? E por que o assunto faz certa gente saltar de seus assentos como se alguma brasa acessa estivesse a lhes queimar?

Talvez o legado mais importante do materialismo histórico para as ciências humanas tenha sido exatamente a análise do fenômeno da ideologia. Ao demonstrar como, pela ideologia, a realidade aparece invertida para os sujeitos sociais. Isto é, ali, onde está a história, aparece, na ideologia, o eterno; onde está a cultura, aparece a natureza; onde está o ser humano, aparece o divino; ali, onde está o particular, aparece o universal. Aquilo que Marx apontou, privilegiado a análise da sociedade capitalista, diversos estudiosos construcionistas em ciências humanas vão reconhecer como constituindo o modo de operar dos sistemas humanos de sociedade, culturas, através das formas simbólicas de representações, imaginários, mitos etc. Pessoalmente, engajei-me na produção dessa compreensão, quando, pela via da contribuição da antropologia, tornou-se possível compreender que a ideologia é a “ilusão fundacional”, como diz o antropólogo francês Georges Balandier, que preside a relação de alienação do ser humano com seus mundos, suas próprias vidas, ao desconhecerem o que funda a realidade por eles próprios construídas e desconhecerem o que lhes funda como sujeitos sociais. Como escreveu o sociólogo Pierre Bourdieu: “a ideologia […] não aparece e não se assume como tal, e é deste desconhecimento que lhe vem a sua eficácia simbólica”. Esse é fenômeno comum a todas às culturas e sociedades, em todas as épocas. O que, para os adeptos do delírio irracionalista contemporâneo, é sinônimo de essencialismo e universalização de conceitos teóricos que não se poderia aplicar senão para as sociedades às quais pertencem seus formuladores.

II

Um incrível exemplo de como um delírio pode ter, para sempre, o efeito cognitivo de fazer que se perca a capacidade de entender o que é um conceito teórico e seu uso para a análise da realidade social. Acreditar que o conceito de ideologia, por ter surgido no século XIX, em país europeu, não pode ser aplicado à análise da realidade social e histórica, como ferramenta de compreensão de um fenômeno social, que, como tal, existe, independente que se tenha inventado este ou aquele conceito, é confundir a leitura da realidade que se pode fazer com a existência da realidade em seu estatuto de ser, ente, forma ôntica. Isso tem nome desde o surgimento das montanhas: idealismo! A filósofa Judith Butler o denuncia como “idealismo linguístico”, “linguisticismo”: “onde tudo é sempre exclusivamente linguagem”, que nunca vê a realidade encarnada, materializada, a realidade como sempre pura representação e nunca materialidade. Se não existe o conceito não existe a realidade, se se muda os termos, a realidade muda em seguida. Foi por ver sua teoria de gênero distorcida por esse tipo de idealismo irracionalista que Butler teve a preocupação de esclarecer que nunca pensou que o gênero seja apenas linguagem, mas efetivamente corpos! E que os corpos pesam, existem, são materiais! Não são pura linguagem! Para os militontos queers que não sabem, vale esclarecer que Butler é uma filósofa racionalista, hegeliana, herdeira do pensamento moderno, que pratica a ideia de um pensamento crítico, racional, consciente, reflexivo! Ela é também kantiana e foucaultiana, e porque leva às últimas consequências um Foucault que também se declarou filiado à ideia moderna de “atitude crítica”, atitude reflexiva, racional e consciente. Autor que nunca cogitou qualquer irracionalismo como modo de pensar.

A compreensão da realidade como constituída de ideias que negam o seu caráter de coisa construída, e que as ciências humanas chamam por ideias ideológicas, não se torna uma formulação apenas do marxismo, ela é – e, de fato, já estava na compreensão de pensadores antes de Marx – um entendimento de alcance geral e de potência heurística, constituindo-se naquilo mesmo que rege a compreensão das ciências humanas no estudo da sociedade e da história. A distinção entre o aparecer social e os processos e práticas que produzem e conservam a realidade instituída não é algo apenas do método marxista de análise, mas concepção que atravessa todas as correntes de pensamento das ciências humanas, que resolvi chamar de uma teorização construcionista crítica.  A ideia da realidade como um construto humano, social e histórico, tornou-se nosso verdadeiro more geométrico, isto é, nosso modelo, nosso método de análise. E, por isso também, nossa compreensão que a realidade construída, de alto a baixo, é também inteiramente revogável pela ação humana, no curso histórico, na atividade política, por deliberações, práticas.

Se há aqueles que enxergam nesse modo de proceder analítico apenas o marxismo – mas pelo desejo de invalidação do marxismo, por deliberada militância intelectual antimarxista –, e que não foram capazes de reconhecer, em outras concepções teóricas o mesmo modo de conceber a realidade, temos aí um caso daqueles que não conseguiram entender que não se pode fazer qualquer ciência, qualquer trabalho de análise da realidade social, sem que se processe pela distinção entre a realidade tal como aparece e aquilo que a própria realidade instituída procura, por todos os meios, e a ideologia como mais significativo, fazer que não apareça como existindo, como possível. Distinção que se pode nomear como entre a realidade e o real, e este como uma dimensão foracluída da realidade instituída, mas, ao mesmo tempo, mais ampla, como um conjunto de possibilidades ilimitadas de outras realidades possíveis, mas que a realidade instituída não deseja que seja reconhecida como tal. O real tornando-se assim uma ameaça à realidade instituída e à ideologia que a procura consagrar como única possibilidade.

Aqui, não há espaço para a demonstração de quantas teorias e autores procedem em suas análises na consideração da distinção entre o ser da realidade e os fenômenos de suas manifestações. Linguistas, sociólogos, antropólogos, historiadores, filósofos, teorias em psicologia e psicanálise, entre outros exemplos, todos trabalham na distinção (que não é disjunção!) entre o que se manifesta à observação imediata e o que somente se torna inteligível (e apenas em certa medida, todo cientista sabe disso!) pelo trabalho do pensamento racional, consciente, reflexivo. Isso que, deste Kant, chama-se a Crítica. E, com esse modo de compreensão, diversas correntes de pensamento (do funcionalismo ao disposicionalismo, passando pelo marxismo e pelo estruturalismo) produziram análises sobre o que passaram a ser vistas como aquelas estruturas profundas, que, embora constituindo a realidade, não se tornam visíveis à observação imediata. Toda ciência, todo trabalho de pesquisa e todo o pensar, enfim, voltam-se a isso. E para todos os assuntos, objetos. Razão pela qual mantemos as universidades abertas para o treino, dos que por ela passam, na pesquisa científica, nos estudos filosóficos, nos diversos modos de estudar a realidade. Curiosamente, existem aqueles que veem nisso um racionalismo obtuso e autoritário, que teria a pretensão de dizer “o que é a realidade”. Para estes, valeria perguntar: o que estão fazendo nas universidades? Se não creem que o conhecimento da realidade seja possível ou que todas as ideias se equivalem, não se podendo fazer distinção entre as representações imaginárias e simbólicas que todos temos da vida, do mundo, da realidade, e àquelas que produzimos no pensar teórico-filosófico-científico, então, o que ensinam?

O marxismo, pois, nunca esteve sozinho quando se trata, assim, de modos teórico-filosófico-científicos de compreensão da realidade. Por essa razão, pouco sentido há em se pensar que o assunto da ideologia é exclusivo daqueles que, marxistas, acreditam que podem dizer o que é verdadeiro e o que é falso. E que se arvorariam também a atribuir a si mesmos que estão com a verdade e os demais na falsa consciência ou na mentira. Essa é uma ridícula caricatura do pensamento marxista e de todos os demais pensadores que trabalham como a análise de ideologia, incluindo os que, não sendo marxistas, sabem muito bem que o fenômeno da ideologia existe, como existem as classes, o poder, o Estado, as pessoas, as cadeiras, as chuvas e os ventos…  Torna-se uma falsificação de má-fé das teses marxistas rebaixar a teoria da ideologia a uma simples retórica acusatória sobre a verdade e a mentira do enfrentamento de interlocutores.

Coisa de quem parou em Napoleão, que entendeu que ideologia era as opiniões de uns contra outros, coisa de quem não leu Marx, não leu o filósofo francês Louis Althusser, nem leu o sociólogo alemão Theodor Adorno, desconhece as obras dos ingleses John Thompson e Terry Eagleton, deixou de conhecer as reflexões do filósofo esloveno Slajov Zizek, não leu a filósofa estadunidense Judith Butler e ignora também o que escreveu sobre o assunto a filósofa brasileira Marilena Chaui. Ignora também a obra de Michel Foucault, um crítico do discurso ideológico, que ele chamou de “verdades” epocais e “discursos”, cujos efeitos de poder produzem sujeitos, isto é, indivíduos como sujeitos de alguma sujeição. Mas, também é fato, há ditos foucaultianos que não foram capazes de ver nisso uma análise do ideológico, da ideologia, isso porque Foucault não usou a palavra nos seus textos.

Aliás, é Zizek que tem uma ótima resposta para aqueles que recusam a análise de ideologia: lembra que, a pressa de alguns em renunciar à noção de ideologia, mais tem a ver com o fato que a análise crítica da ideologia, como a denúncia do fracasso da contingência em querer aparecer como o necessário e o inevitável, é também a revelação da escancarada denegação dos compromissos com a sujeição e a dominação daqueles que, pretendendo aparecer como isentos – ou críticos das “contradições” do outro – carregam consigo a fantasia ideológica de agirem por um fim, quando, de fato, agem por outro, bem sabendo o que “perfeitamente fazem, e, no entanto, o fazem”. De fato, a análise da ideologia pode mesmo ser bem reveladora não apenas de como a realidade construída é instituída, passando do contingente ao “necessário”, do particular ao “universal”, do humano ao “divino”, como pode também ser bem reveladora das práticas e até mesmo de como está constituído o caráter dos indivíduos. Afinal, como compreendo, a partir da ideia de subjetivação proposta pelo filósofo Michel Foucault, a ideologia é um poder de subjetivação como outros. É um poder de produção de sujeitos, que, para Foucault, é sempre o sujeito da sujeição. Que se este, por seus próprios movimentos sobre seu ser, pode buscar escapar à sujeição, resistir a modos de governo de seu ser, produzindo ele próprio modos de subjetivação que sejam exercícios de sua liberdade, em todo caso, haveria aí sempre o indivíduo como sujeito, pois, esse é, como escreveu Judith Butler, “o preço a pagar pela existência social”, que nos obriga a estar submetidos a normas e a negociar com elas. Nesse sentido, erraram todos aqueles, entre os quais Jürgen Habermas, que acusaram Foucault de não ver outra coisa senão poder e sujeição. Ora, as ideias do autor em torno dos assuntos dos regimes éticos do cuidado de si, estilizações da vida como práticas de liberdade etc. dão conta que Foucault pensou o assunto da sujeição simultaneamente pensando como os sujeitos a esta podem resistir, podem converter-se em agentes de resistência.

III

E a propósito de resistência, subversão da sujeição, todos aqueles que se ocupam da análise de ideologia trataram de chamar atenção para o fato que não se torna possível um sair da ideologia, como um sair da sujeição, como se fosse possível sair da linguagem com a qual somos constituídos. O que se torna possível é buscar sempre mais a desideologização de si e da realidade, como pensou assim o psicólogo espanhol Martin-Baró, e posteriormente o psicólogo estadunidense Tod Sloan, para os quais a desideologização representaria exercícios críticos de ultrapassagem no ser do indivíduo dos efeitos da sujeição ideológica. Para Tod Sloan, algo que ele aproxima do que Paulo Freire chamou de conscientização (o autor brasileiro é recuperado por Martin-Baró e Tod Sloan ao teorizarem sobre o tema). A desideologização torna-se um trabalho crítico do indivíduo sobre si próprio, com todos os traços do que, como assinalei acima, Michel Foucault traz como cuidado de si.

Muito curioso eu fico de ver a incapacidade de certos ditos foucaultianos de não enxergarem relações e sínteses possíveis entre perspectivas teóricas que estão ocupadas com a reflexão dos mesmos fenômenos e problemas da existência humana, da vida em sociedade. Certos ditos foucaultianos que tremem horrorizados cada vez que ouvem falar de ideologia ou de desideologização, estes, sim, que somente conseguem enxergar o poder que Foucault desenhou nos seus textos, que não conseguem ver qualquer relação entre discurso e ideologia, pelo único motivo que é o fato do autor (transformado em sumo-sacerdote da Igreja Universal do Reino de Foucault) ter um dia na vida decidido escrever em dois únicos de seus textos e em algumas entrevistas que “não gostava do termo ideologia”, mas sem nunca ter escrito um único pequeno texto para fundamentar a sua recusa.

img-20161016-wa0025 De minha parte, considerando-me um foucaultiano, mas ao meu modo, pois não me filio a igrejas, nunca aceitei essa recusa do autor como algo inevitável, necessário, universal para o pensamento, uma verdade absoluta, irremovível, mas como uma construção pessoal, dentro da contingência do debate intelectual na França, nas brigas de Foucault com o Partido Comunista Francês, sem que exista qualquer razão para reproduzir suas escolhas como dogmas. E não estou só quanto ao que digo, por exemplo, sobre as relações entre discurso e ideologia, no pensamento de Michel Foucault, podendo mencionar aqui Louis Althusser, o linguista francês Michel Pêcheux, o estudioso da comunicação inglês Norman Fairclough. Mas, adeptos de igrejas, em geral, leem apenas suas Bíblias!

E porque se torna possível separar o que é a ideologia e o seu contrário, isto é, o trabalho da razão reflexiva, racional, consciente, mas não apenas!, mas, igualmente, das sensibilidades, intuições, imaginações, que chamamos, numa só palavra, crítica, é que se torna possível, do ponto de vista cognitivo e epistemológico, definir um fora-da-ideologia, um pensamento-fora, o pensamento da “indocilidade reflexiva” e da “inservidão voluntária” (com estas palavras Michel Foucault definiu belamente o que é a crítica, numa conferência, em 1978, na Sociedade Francesa de Filosofia, na qual se filia à tradição kantiana, afirmando com todas as letras que a crítica é uma atitude de modernidade, uma atitude de Esclarecimento; isso deveria servir para certos foucaultianos de igreja pararem de caricaturar Foucault como um crítico da razão e da modernidade, fazendo dele um idiota irracionalista, e dando margem a que marxistas, em erro, o tomem por tal; o que não é o caso!), então, porque se torna possível separar ideologia e crítica, pensamento ideológico e crítica à ideologia, que Zizek escreveu: “embora nenhuma linha demarcatória clara separe a ideologia e a realidade, embora a ideologia já esteja em ação em tudo o que vivenciamos como ‘realidade’, devemos, ainda assim, sustentar a tensão que mantém viva a crítica à ideologia. […]: a ideologia não é tudo; é possível assumir um lugar que nos permita manter distância em relação a ela, mas esse lugar de onde se pode denunciar a ideologia tem que permanecer vazio, não pode ser ocupado por nenhuma realidade positivamente determinada; no momento em que cedemos a essa tentação, voltamos à ideologia.” Isto é, o autor está dizendo: o ponto de vista extra-ideológico é um exercício do pensar, é um trabalho de reflexão, não é uma verdade, um regime, nem mesmo um ponto de vista. Razão pela qual é lugar vazio, lugar de uma atividade do pensamento que, a cada vez, se constitui, que nunca cessa, e que não pode se fixar em nenhum significante ou significado instituído ou por vir.

Mas, por que tanta gente tem dificuldade em compreender e aceitar a noção e a análise da ideologia como fenômeno existente, o fenômeno das ideias que procuram negar o caráter arbitrário/convencional da realidade instituída? Aliás, para o filósofo turco Cornelius Castoriadis, só há realidade porque “instituída”, porque nada há que exista antes de sua institucionalização, a ideologia, também para ele!, tornando-se o imaginário e o simbólico que a consagram como natural, única, necessária e inevitável, negando seu caráter de coisa instituída, coisa construída. O filósofo Castoriadis é bem outro exemplo de pensador não marxista que, fazendo reparos ao marxismo, não deixou de reconhecer e incorporar ao seu pensamento os contributos dessa corrente, sem, no entanto, descuidar de incorporar outras contribuições teóricas, a exemplo do interacionalismo simbólico, do estruturalismo e da psicanálise.

A dificuldade de tanta gente com o termo parece estar no entendimento comum, ordinário, cotidiano –  que se pede a estudiosos e professores universitários que não façam de seus entendimentos – que toma a ideologia como sinônimo de opiniões, ideias. As ideias que se defende para assegurar uma causa, sem distinção da natureza dessa causa, que pode ser de “direita” ou de “esquerda”, “progressista” ou “conservadora”, ou avaliada como “boa” ou má” etc. A ideologia concebida como podendo ser ideias de quaisquer sorte, bastando que se especifique a “causa” que se advoga.

No meio acadêmico, é mais comum uma atrapalhada concepção que define todo pensamento e toda interpretação da realidade como ideológicos. Esse entendimento, sustentado por autores como Karl Mannheim – para quem “não é mais possível para um ponto-de-vista e para uma interpretação refutar os demais por serem ideológicos, sem ter que enfrentar essa acusação”–, pode ser ele próprio visto como um pensamento ideológico, que, facilitando o trabalho da ideologia, a faz desaparecer como aquilo que ela é, pois, ao se dizer que “tudo é ideologia”, não se torna mais possível distinguir o ideológico daquilo que é o seu contrário, o não-ideológico. Mas, uma vez que o pressuposto inicial desse entendimento é que ideologia é toda “interpretação interessada” ou “todo pensamento social e historicamente determinado (condicionado)”, nenhum escaparia de ser ideológico. Para autores como Mannheim, os atos de pensamento e conhecimento não seriam puramente teóricos, racionais, formais, mas igualmente atravessados de influências provenientes de vontade, interesses, conflitos da vida social, valores culturais, ideias da época etc., isto é, “influências externas ao pensamento” e, portanto, “ideológicas”. Isso faria que nenhum ponto de vista possa atribuir a outro ser ideológico e não se reconhecer como também da mesma natureza. Ora, o que define o ideológico não é ser “ideia socialmente determinada”, mas ser as ideias e as formas simbólicas e imaginárias que procuram naturalizar e eternizar a realidade social, cultural, humana e histórica, que é sempre contingente, particular, transitória, revogável.

Por essa minha compreensão do fenômeno da ideologia nas culturas e sociedades humanas, é que, não sendo marxista, reconheço nas análises marxistas uma contribuição sobre o assunto, sem a qual toda a análise da ideologia estaria sem seu importante ponto de partida que foi a tese de Marx e Engels sobre um fenômeno que, se queira ou não, faz da vida em sociedade o existir dentro de “redomas de ilusória transparência” (a imagem é do historiador Paul Veyne, definindo o que é o discurso em Foucault), que os sujeitos sociais sequer se dão conta que estão dentro delas e que elas existem, mas dentro delas agem agidos pela atmosfera que guardam e procuram perpetuar.  De minha parte, não ser marxista nunca significou engajamento numa militância intelectual contra o marxismo, nem menos ainda contra a ideia de que há o que se pode chamar ideologia e o que se pode definir como o seu contrário, sem nunca ter entendido tal distinção, proposta com muita clareza pelos autores marxistas, como algo aberrante, fruto de um racionalismo autoritário, dogmático e sectário. Infelizmente, dentro e fora das universidades, não cessam as ações daqueles que fazem do combate ao marxismo e suas categorias de análise uma verdadeira missão catequética. Aliás, catequese que coincide inteiramente com a ação daqueles que, a exemplo do caso atual brasileiro, estão defendendo a “escola sem partido”, por presumida prática de “assédio ideológico”, nomeando de “ideologia” o que é exatamente o seu contrário, o pensamento reflexivo, científico e crítico, que não querem ver ensinado nas escolas do país, nem nas universidades. Numa retórica de hipócritas que tentam fazer crer que o pretendem é livrar estudantes das “ideologias de esquerda”, quando, de fato, o que querem é o ensino puro e simples da ideologia como tal.

matrix-e-a-tv Não sem razão, o ataque à noção de ideologia, entre outras categorias marxistas importantes, é o ataque preferido dos antimarxistas assumidos ou daqueles acadêmico-envergonhados,  é o alvo preferido desses verdadeiros dom-quixotes que lutam contra seus próprios fantasmas, psicológicos ou políticos. Atrapalhados em compreender o que Marx e Engels escreveram sobre o fenômeno da ideologia, transformam a crítica a um conceito teórico na negação da existência do próprio fenômeno da ideologia como tal. Alguns deles, mais afeitos ao discurso acadêmico, os que estão nas universidades, falam de “poder” como existindo (e fazem do conceito o verdadeiro Bombril de seus discursos), falam de “religião”, “cultura”, “simbólico” etc. como fenômenos sociais, mas o que nunca pode ser um fenômeno a ser estudado é a ideologia.

Entre certos tipos acadêmicos engajados na quixotesca luta contra o emprego da noção de ideologia (que tomam como sinônimo de análise marxista), há aqueles que se comprazem e gozam em buscar lançar frases de efeito, como se fossem verdadeiros acendedores de fogos de artifício, para acusar a análise de ideologia de “ciência do strip-tease”, pela infeliz ideia que aqueles que fazem a análise de ideologia estariam querendo “desnudar a realidade”, porque seriam obcecados pela compreensão que a ideologia “esconde a realidade”, o trabalho da crítica pretende “deixar a nu as verdades escondidas” – e entendem isso na ignorância que é a deles sobre uma imagem que é da etnologia, quando pensa a descrição interpretativa das culturas na comparação com as sociedades complexas: as sociedades indígenas, chamadas primitivas, tribais, põem a nu, para o etnólogo, o que, nas nossas sociedades, são estruturas mais ocultas.

Para quem não sabe, e treme com a palavra “nu”, de prazer reprimido ou de horror ou por tabu com a nudez, como a normalista de outrora, a expressão é utilizada por Lévi-Strauss! Mas, enfadonhos, certos devotos do irracionalismo (que querem ser reconhecidos como “pós-estruturalistas”; uma besteira sem tamanho que não se sustenta a menor prova de suas contradições no uso do conceito de estrutura; assunto sobre o qual tratei também recentemente em minha tese de Titular) repetem ad nauseam um rosário de metáforas tolas – mas acreditando que são o sucesso do quarteirão intelectual no qual habitam e para o qual arrastam alguns bajuladores ingênuos – para acusar o pensamento marxista e análise de ideologia de um racionalismo essencialista, universalista, autoritário e, pasmem leitores!, falocêntrico. Sim, encontram falocentrismo peniano em mero uso de termos como pinçados de seus contextos, ridicularmente forçados em seus significados. Veem o “falo” machista, masculinista e heterossexista onde apenas está reflexão crítica, mas sem os delírios irracionalistas dos quais se alimentam. Aliás, que deixa a impressão que transferem a própria vida sexual para uma fala sexualizada, projetada sobre os outros, e repetida sem qualquer criatividade em todas as ocasiões possíveis! Há quem diga que já se tornou mesmo – e revelado em ato falho público! – em “onanismo acadêmico”! Utilizar de imagens sexuais para criticar teorias e autores somente me faz pensar que, no caso desses dom-quixotes do irracionalismo antimarxista e avessos à teoria da ideologia, somente pode existir algum problema no gozo sexual, substituído pelo sexo na fala. Falo, falo, falo, oh, eu falo sobre sexo! Faço o discurso do sexual, vejo sexo em tudo, já que o sexo falta em mim! Não foi Michel Foucault que denunciou que, no Ocidente, à falta de uma arte erótica, inventou-se a ciência do sexual, para fazer falar o sexo, ao invés de praticá-lo?

Os acusadores de falocentrismo nas metáforas conceituais do marxismo e da análise de ideologia – ao se falar de desvelamento, descortinação, que a ideologia penetra à subjetividade dos indivíduos, tornando-os sujeitos – deveriam recorrer a alguma análise, a algum cuidado de si, a alguma hermenêutica de si, para não sair por aí esparramando, sobre auditórios universitários e acadêmicos, o que deveriam guardar par si como questões que só fazem apelo às suas próprias subjetividades. Ora, quando, depois de Lacan e Agamben, bem poderiam ter apreendido que o falo não é o pênis, nesse âmbito há o que se poderia chamar de potência, que, para homens e mulheres, torna possível as mil singularidades possíveis e vivíveis, para o melhor e para o pior, mas sempre como o que torna possível que o indivíduo não seja tão somente sujeito, pura obediência à sujeição, podendo, por sua potência, ser outro-mais, mais-além, um mais-de-vida.

Puras tolices! A crítica ao racionalismo obtuso já foi feita com muita consistência por vários autores, por Michel Foucault, pelos teóricos críticos de Frankfurt, por Michel Maffesoli, entre outros. Mas, no marxismo, se há reparos a fazer não é à sua adesão à ideia de razão, sua teoria da ideologia. A crítica ao racionalismo como produtor de “técnica de dominação” já foi feita, e bem!, pelos autores da chamada Escola de Frankfurt. Aliás, sobre cuja produção intelectual, Michel Foucault declarou, em entrevista, “que se tivesse estudado como poderia ter feito, não teria dito tanta bobagem”.

Bobagens como as que se pode escutar, em certas ocasiões, proferidas com a pretensão de “abalar Paris”, mas que se mostram tão somente pobres considerações sobre o que não se suporta ouvir, quando o que se diz é o desvelamento de suas próprias imposturas, não menos contribuintes com a manutenção do status quo de grupos de poder, o status quo da ordem social vigente, que a crítica à ideologia, em todas as suas formas, não consagra nem perpetua.

Pena que, no seio das próprias ciências humanas, exista quem as procure demolir do seu próprio interior, entregando-as aos seus adversários, que, aliás, no Brasil, estão agindo à solta, em projetos de leis contra a sociologia e a filosofia no ensino médio, chamando-as de racionalistas obtusas, autoritárias, sectárias, dogmáticas, partidárias do que acreditam ser uma partilha entre “verdade” e “mentira”, doutrinadoras de esquerda. Professores universitários, presumidamente engajados em posições políticas críticas, que se engajam contra o marxismo, contra a teorização construcionista crítica e contra a análise de ideologia, sem se darem conta, estão contribuindo com uma invalidação das ciências humanas, tal como já o fazem os reacionários, em sua guerra aberta aos nossos estudos, análises, teorias. Mas um efeito da ideologia é esse mesmo: fazer que os sujeitos da sujeição ideológica se tornem cúmplices de sua própria sujeição e de outros!