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Os interesses inconfessáveis da PEC 241

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Entre as características políticas que mais notabilizam o Governo Temer até o momento, e uma das que de maneira mais contundente se alinha as circunstâncias graça as quais chegou ao poder é, certamente, seu desapreço pelo debate com a sociedade. Mudanças bruscas e de grande magnitude e repercussões são propostas sem cerimônia e com o mínimo de debate possível.  Afinal, como se trata de um governo cujo programa efetivo não passou devidamente pela consagração das urnas e pelo escrutínio popular, logo não é de se espantar que o mesmo cultive um verdadeiro desdém pela participação e a discussão pública. Foi assim com a Medida Provisória de Reforma do Ensino Médio e está sendo com a Proposta de Emenda Constitucional 241, conhecida como a PEC do Teto dos Gastos Públicos, a qual propõe o congelamento da despesa estatal primária por 20 anos, salvaguardado o seu reajuste pela correção em termos da inflação anual via IPCA.

1-brbsqwlsaqwspgvomrxnbaAs disputas em torno da PEC do Teto irão fortalecer em grande medida uma representação social e uma orientação normativa para as ações estatais nas próximas décadas, principalmente no que se refere a relação do Estado com os direitos sociais e a desigualdade social. A meu ver, tal como está sendo proposta, a PEC 241 segue um caminho que interrompe o incipiente projeto de construção e consolidação do Estado de Bem-estar social brasileiro. Projeto que foi inaugurado, de modo mais universalista, como princípio e meta a partir da Constituição de 1988, e sua constitucionalização dos Direitos Sociais e de um sistema coordenado de políticas públicas na atuação dos entes federativos, e, posteriormente, executado paulatinamente com diferentes ênfases e êxito durante os governos FHC, Lula e Dilma, sobretudo, no que tange ao estabelecimento de uma rede mais sólida e ampliada de acesso à serviços sociais básicos e direitos.

A interrupção de um projeto de Estado de bem-estar, duramente erguido e ainda não-consolidado, reatualiza, de maneira revigorada, a tendência antissocial e privatista do Estado nacional, que foi a marca da sua construção e perfil ao longo da história do Brasil, como mostra os estudos de diversos sociólogos, cientistas políticos e historiadores que se debruçaram sobre a formação social do país.

O fato de se propor uma mudança na Constituição com respeito a destinação dos recursos públicos sem estabelecer um debate mais amplo e profundo com a sociedade é suficiente para constatar o ímpeto antissocial e antipovo que afeiçoa o governo Temer. A PEC 241 ambiciona fixar propósitos e prioridades coletivas (redução dos gastos públicos, equilíbrio fiscal, cortes) sem consultar devidamente a sociedade. Uma decisão de enorme impacto em gerações presentes e futuras é tomada com base na opinião de meia dúzia de tecnocratas, ao invés de, como convém numa democracia, buscar a formação de um consenso produzido por um amplo, diverso e irrestrito processo de discussão e deliberação com a coletividade e seus distintos atores. Isso por si só já é sintomático de que não se trata de um projeto pensando o país, haja vista que dispensa a discussão popular, mas, antes e fundamentalmente, pensado para garantir ganhos de curto e médio prazo para grupos de interesse e pressão que teriam com o ajuste fiscal proposto os seus interesses e privilégios preservados e reforçados.

O fatalismo do qual parte a PEC 241 sobre a raiz do desequilíbrio das contas públicas que somente poderiam ser sanadas mediante contenção das despesas primárias é bem mais uma escolha proposital e interessada do que um equívoco técnico e analítico. Mirar nas despesas, como se estas fossem a origem dos problemas fiscais, e não na arrecadação e receitas é uma decisão política, e que atende a interesses políticos, sociais e econômicos particulares. Isso fica mais patente quando diferentes estudos e analistas, mesmo reconhecendo a veracidade da situação de desequilíbrio fiscal do Estado, demonstraram que, na verdade, essa situação não se deve a um suposto crescimento irresponsável das despesas primárias, mas, sim, a queda na arrecadação provocada por fatores externos e internos aos governos e a sociedade e economia brasileira.

O estudo de Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair, pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), sobre a evolução da política fiscal dos governos FHC, Lula e Dilma é taxativo na afirmação de que o ritmo médio de crescimento da despesa primária não cresceu nem estourou como se alardeia. Na verdade, ele sofreu pouca alteração, porque, em primeiro lugar, as despesas primárias apresentam um caráter mais rígido e inercial em razão do próprio arcabouço de benefícios sociais estabelecidos constitucionalmente . As variações observadas, quando analisadas à luz do PIB ao longo do período desses governos, revelam serem, com efeito, muito mais resultados da dinâmica do crescimento econômico, das taxas das receitas e do crescimento vegetativo do número de beneficiários por razões demográficas e políticas (valorização e regra do reajuste do salário mínimo e expansão da formalização no mercado do trabalho).

Nesse sentido, o cerne da questão está muito mais na organização racional das receitas e de seu alinhamento as variações contextuais das despesas estatais sob um crescimento econômico mais consistente e reformas capazes de alavancar e garantir maior estabilidade na arrecadação e torna-la menos volitiva do que propriamente no plano de um ajuste fiscal impiedoso e perverso sobre os investimentos e gastos públicos.

Retomando, o enfoque sobre o teto dos gastos públicos não é gratuito. Ele é cúmplice e estratégico na composição e acomodação de interesses bem delimitados:

pec-241-camara-600x3611) Amplificar a percepção social sobre o estrago da “crise” e dos equívocos e irresponsabilidade dos governos do Partido dos Trabalhadores – “O PT quebrou o Brasil”, “pior crise da história do país”, “maior esquema de corrupção”, etc.. Os dividendos políticos dessa estratégia ideológica já surtiram efeito nas eleições municipais. Com ela, espera-se, resultado ainda mais favorável nas eleições de 2018, enfraquecendo não apenas o PT e os demais partidos e movimentos de esquerda, que, em tese, seriam os mais combativos e engajados para vocalizar nos espaços de poder e de decisão o problema da desigualdade social como também toda discussão sobre uma agenda de inclusão e expansão de direitos.

2) Desvia o foco da premente reforma da estrutura tributária do país, cujo tratamento injusto e díspare entre pessoas com capacidade contribuitiva bastante desigual é gritante.  Os impostos, no Brasil, penalizam os pobres e parte significativa da classe média ao incidir fortemente sobre o consumo e a renda salarial, ao passo que permitem que o grosso dos ganhos dos mais ricos (“dividendos” e “lucros” em investimentos financeiros ou participação em grandes empresas, por exemplo) siga sem ser devidamente taxado. Outra distorção tributária absurda é a isenção de aviões, jatinhos, helicópteros e lanchas particulares. Ao contrário dos automóveis populares, aqueles escapam do IPVA ou de outra taxação semelhante por não haver menção a eles enquanto veículos e meios de transporte privados na Constituição. Com a PEC 241, os altos índices de sonegação fiscal, a regulamentação dos impostos sobre as grandes fortunas e a revisão sobre o imposto de heranças milionárias permanecem sob o véu do esquecimento político. A PEC 241 não toca um dedo sequer nessas questões, as quais seriam essenciais para o incremento e maior estabilidade da arrecadação.

3) A concentração no controle das despesas e sua evolução significa retirar ou atenuar a ação do Estado em áreas estratégicas (educação, saúde, infraestrutura), de modo que, assim, deixa-se o caminho pavimentado e arejado para a exploração da iniciativa privada e dos poderes do mercado. E, provavelmente, mantendo as desonerações fiscais, as quais, ampliadas no governo Dilma, foram um dos principais fatores responsáveis pelo desequilíbrio financeiro, junto com os efeitos da crise econômica de 2008 e  da recessão – e a retirada do apoio do capital rentista e industrial – sobre a arrecadação e o crescimento econômico e, finalmente, o pagamento de juros crescentes da dívida pública.

Por último, o ajuste de contenção sobre as contas públicas alarga o espaço fiscal para o pagamento da dívida pública, ou melhor, de seus juros escorchantes, drenando e transferindo ainda mais recursos públicos para o setor privado, especialmente para as frações dominantes do mercado financeiro em detrimento de um atendimento mais efetivo e de maior qualidade das necessidades e demandas da população brasileira e das classes que vivem do trabalho e do salário.

Cabe lembrar, ainda, que as mudanças e consequências da PEC 241 podem preparar o terreno para outras reformas, como a previdenciária e dos direitos trabalhistas. Estas encontrariam no novo Regime Fiscal a sua justificação e inapelável necessidade. Como podemos concluir, trata-se de um modelo e concepção de Estado que está sendo gestado. Um modelo em que o lastro do privatismo será ampliado. E os interesses privados dos grupos financeiros dominantes irão se converter e se confundir ainda mais com o que é considerado “interesse público”. A PEC 241 pode até redundar num Estado mais equilibrado do ponto de vista fiscal e de suas contas públicas. Mas a que preço? Ao preço de um Estado mais subordinado ao poder do mercado e aos interesses de uma minoria endinheirada; ao preço de uma sociedade ainda mais desigual, em que o peso das condições de classe, cor, etnia, gênero e região de origem tornam-se decisivos para alcançar uma vida decente e realizada. Ao preço da fragilização da rede de Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social) para os que dela necessitam de maneira vital. Vale à pena?

O viés ideológico e as consequências práticas da PEC 241 são reveladoras de como as elites dirigentes e financeiras do país, cujos interesses foram tolamente abraçados e defendidos por uma classe média politicamente deseducada e insensível socialmente, não se constrangem nem um pouco em secundarizar e minorar os direitos fundamentais quando se trata da defesa de seus privilégios sociais e de uma estrutura política que lhes beneficia sobejamente. Basta que a correlação de forças lhes seja um pouco favorável, como assistimos tristemente na atualidade. Pouco se importam se no Brasil vige, secularmente, mesmo após melhorias sociais que asseguraram mais dignidade e autonomia nas condições de vida de milhões, um vasto contingente de pessoas pobres, incapazes de arcar com o pagamento de serviços básicos e que dependem do Estado para almejar uma vida melhor. Para essas elites, o “custo” fiscal da provisão de serviços e bens de cidadania e inclusão social para a maior parte da população, não lhes diz respeito algum. Eis aí o histórico liberalismo amesquinhado que é cultivado pelas nossas elites.

A PEC 241 representa uma ruptura perversa com os consensos políticos e sociais que, desde da Constituinte, foram duramente construídos para forjar um projeto institucional e civilizatório em que o Estado é concebido enquanto um agente essencial na promoção e efetivação dos princípios fundamentais de cidadania, dignidade e bem-estar para a população. Romper com esses acordos e com concepção de Estado de Bem-estar significa consagrar a vitória do lucro, do patrimônio privado, dos juros e das rendas milionárias sobre os serviços públicos, os direitos sociais e o combate da desigualdade social. É preciso reagir para que não percamos o que foi conquistado nas últimas décadas e, desse modo, manter e aprofundar os consensos e promessas que balizaram a redemocratização do país e o tipo de sociedade a ser construída.

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Para maiores detalhes sobre a dinâmica dos Gastos Públicos ver: Flexibilização Fiscal: Novas evidências e desafios e Ajuste Fiscal no Brasil: os limites do possível