Se o mundo fosse um lugar feliz e justo, os que desfrutam de respeito retribuiriam em igual medida a consideração que lhes foi concedida. (Richard Sennett)
Antropóloga de formação e de vocação, Maria mora em Brasília/DF acerca de seis meses. Trabalha num instituto governamental de pesquisa social e realiza atualmente um importante estudo etnográfico sobre a delinquência juvenil, especificamente sobre o tratamento institucional dos órgãos públicos para o tema da criminalidade entre os jovens. Politicamente engajada e sensível aos dramas sociais da juventude de baixa renda, Maria – jovem, negra e oriunda de uma família de classe média urbana da cidade de João Pessoa, no estado da Paraíba – não deixa de externar sentimentos de indignação e revolta sempre que indagada sobre o assunto de seu trabalho, principalmente naquilo que julga ser uma “má-fé institucional” do Estado brasileiro em suas políticas de juventude. Ainda assim, a indignação no trabalho não esconde a também autorrealização pessoal de Maria no exercício de um ofício, no qual se identifica vocacionalmente. Diz Maria que estudou ciências sociais para isso: atuar como antropóloga pesquisadora em projetos governamentais e de politicas de públicas. “Ofertar novas lentes a velhos burocratas que sofrem de catarata social”, responde ela em tom de brincadeira.
Mas o aparente bom humor e o sentido de valor positivo atribuído ao seu trabalho não permite pressupor que Maria julgue sua própria vida como a materialização de seus ideais de bem viver pleno. Antes de se estabelecer em Brasília, Maria já havia percorrido pelo menos, três estados de norte a sul do Brasil, mudanças e descolamentos territoriais (e também sociais) decorrentes do tipo de trabalho que realiza. É que suas pesquisas se apoiam institucionalmente em contratos temporários firmados com diferentes governos estaduais e órgãos federais, o que resulta numa grande rotatividade espacial a cada término ou inicio de pesquisa. Dito de outro modo, Maria está constantemente exposta ao risco de desemprego. E para neutralizar “temporiamente” esse risco, precisa mobilizar aquilo que o sociólogo Richard Sennett chamou de “comportamento flexível”, ou seja, estar aberta a constantes transformações no trabalho, dentre as quais, cultivar a capacidade de se adaptar aos possíveis deslocamentos sociais. Em termos de ação estratégica, Maria tem respondido relativamente bem a essa exigência da nova economia organizacional do mercado de trabalho. Mas no que se refere a sua vida emocional, Maria teme estar experienciado uma crescente erosão de seus laços afetivos de origem, além da extrema dificuldade de forjar novos laços sociais na atual conjuntura de seu trabalho, algo que tem sido fonte de preocupação para ela.
Para Maria, sua principal dificuldade – em meio as inúmeras mudanças de cidade por conta do trabalho – é a de construir um senso de comunidade nos novos lugares onde vive. Nesses lugares que acabam se apresentando como verdadeiras “comunidades-dormitório”, construir laços afetivos estreitos é um grande desafio físico e emocional, pois demanda experiências intersubjetivas longas e mais ou menos duradouras, possíveis apenas num contexto de tempo linear e relativamente fixo, este último, “recurso” extremamente escasso na vida moderna atual. Por conseguinte, num cenário de laços afetivos frágeis, a memória da família e dos amigos mais íntimos deixados para trás, em sua cidade de origem, torna-se a miragem mais presente. E que produz fortes abalos sobre a estrutura emocional de Maria. Evidentemente que na atual realidade de inovações tecnológicas e informacionais, sempre podemos recorrer à internet ou ao telefone celular a fim de recuperar e atualizar nossos vínculos sociais localizados em outros lugares. E é o que Maria, sempre na medida do possível, tem feito. Mas que em meio a tantas vantagens prometidas pelas novas formas tecnológicas de interação, persiste a frieza limitante e a imaterialidade da cultura de distância, inversamente diferente da cultura quente e de contato, típica nas interações face a face ou de corpo a corpo. Algo também descrito pelo sociólogo Zygmunt Baumann como fenômeno de crescente “liquidez” dos laços humanos.
Assim, como o estrangeiro de Georg Simmel, Maria se sente às vezes desenraizada no mundo que habita. Como uma cigana que circula por diferentes territórios e culturas coletivas, mas que diferentemente dos ciganos que sempre viajam em comunidade, Maria segue sozinha sem experimentar e atualizar substantivamente seu senso de comunidade forjado em seu meio social de origem.
É bem verdade que Maria pauta suas escolhas profissionais e, sobretudo pessoais, motivada pelo desejo duplo de se autorrealizar no trabalho e de busca da relativa estabilidade financeira. Mas ao custo emocional de não encontrar condições objetivas e intersubjetivas para atualizar suas inclinações afetivas mais fortes. Daí suas escolhas, aparentemente refletidas, não serem plenamente soberanas e livres de coerção externa, tal como insistentemente pregado pelo senso comum liberal de algumas novas tendências hipersubjetivistas da psicologia e da sociologia, sempre reduzindo os problemas a uma questão de mera “auto-responsabilização” (como se os problemas desaparecessem automaticamente por efeito de tomada de consciência ou de reflexividade).
Maria fez escolhas sim, mas escolhas “pré-escolhidas”, isto é, escolhas autônomas num universo limitado de escolhas objetivamente possíveis. A escolha de “uma” carta em meio a um número determinado de cartas “numeradas”. Cartas numeradas pelas novas configurações institucionais do capitalismo, que como frisou Richard Sennett, exigem do trabalhador, um comportamento flexível marcado pelo desapego ao lugar e às pessoas; e que conviva com a fragmentação atual da vida cotidiana e com vínculos sociais efêmeros. Nesse sentido, Maria em sua opção pelo “risco”, acabou descobrindo o sentimento oceânico de estar à deriva.
É difícil afirmar se Maria fez a escolha “certa” ou “errada”, ela mesma não tem certeza disso. Talvez especular sobre outra carta, a “carta de copas” escolhida por João, jovem professor do ensino médio que trabalha em várias escolas particulares, nos ajude a entender melhor esse dilema. É o que pretendemos desenvolve no próximo texto.
*O relato da historia de vida descrito ao longo deste texto, embora possa parecer realista para muitos dos leitores, não corresponde de modo algum a história real e fiel de alguém supostamente chamada de Maria (personagem inventado por mim), mas trata-se de uma crônica fictícia baseada em muitos das conversas que mantenho com amigos pessoais e de trabalho. Conversas nas quais compartilhamos as angustias e sofrimentos emocionais de nossa geração como que numa sessão informal de terapia de grupo. E evidentemente, nesses momentos de desabafo coletivo, nos damos conta do quão os nossos professores e mestres deixaram de ser referencias pessoais para nós mesmos. E o mais trágico, que os mesmos “educadores” não se importam com isso, mas que ao contrário, preferem o gozo de tirar e colecionar fotos do fracasso profissional e pessoal de seus pupilos. Por isso, dedico a esses mesmos “mestres” DA razão cínica, o presente texto.