Homero de Oliveira Costa – professor do departamento de Ciências Sociais da UFRN
O editorial do jornal francês Le Monde do dia 27 de agosto de 2016 (“Queda de Dilma ou é golpe de Estado ou é farsa”) ao analisar o processo de impeachment em curso no Brasil afirma que “Se esse não é um golpe de Estado, é no mínimo uma farsa”.
O jornal diz o que todos que acompanham esse processo desde o início já sabia: a articulação de um golpe de Estado, no qual o resultado do julgamento nas duas Casas Legislativas (Câmara dos Deputados e Senado) era previsível. Tanto a sessão “circense” no dia 17 de abril de 2016 como a iniciada no dia 25 de agosto de 2016. Reconhece, como muitos dos que foram contrários ao impeachment, que Dilma Rousseff cometeu muitos erros políticos, econômicos e estratégicos (…) “mas sua expulsão, motivada por peripécias contábeis às quais ela recorreu bem como muitos outros presidentes, não ficará para a posteridade como um episódio glorioso da jovem democracia brasileira”. E completa: “Para descrever o processo em andamento, seus partidários dizem que esse foi um “crime perfeito”. O impeachment, previsto pela Constituição brasileira, tem toda a roupagem da legitimidade. De fato, ninguém veio tirar Dilma Rousseff, reeleita em 2014, usando baionetas. A própria ex-guerrilheira usou de todos os recursos legais para se defender, em vão”.
Há vários aspectos a considerar nesse processo. Se, por um lado, a defesa teve o mérito de documentar, de acumular provas de que não houve crime de responsabilidade, evidenciando que houve um golpe parlamentar, com apoio de setores do judiciário e da mídia hegemônica, fez o que deveria ter feito: a defesa no parlamento mesmo sabendo que a possibilidade de reverter os votos de alguns senadores era remota. No entanto, por outro, abriu espaço para legitimar o processo, ou seja, deu argumentos aos golpistas no sentido de que houve a obediência à legalidade e aos ritos do impeachment e como diz o editorial da publicação eletrônica multimídia Carta Maior (28/08/2016) “findo o último ato no STF, com um julgamento pelos ministros que conclua que todos os procedimentos no Congresso foram regulares e obedientes à Constituição, o que restará à defesa? Aceitar como legítimo o resultado inteiro”.
A votação no Senado é o fim de um processo iniciado logo após a eleição de outubro de 2014, com a vitória de Dilma Rousseff e o inconformismo dos derrotados. Os escândalos de corrupção foram usados apenas como pretexto, como os na Petrobras, que foi uma espécie de “gota d’água”, mas não a causa da queda de Dilma Rousseff, até porque a base do processo do impeachment não foram atos de corrupção (O que não é o caso de muitos dos seus acusadores e juízes, a começar por quem iniciou esse processo na Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, afastado depois por decisão do STF, acusado de corrupção, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha).
No Senado, um dos principais articuladores foi Romero Jucá, nomeado Ministro do Planejamento do governo interino e afastado pouco depois em meio a um escândalo. Este pelo menos foi sincero ao afirmar que um dos objetivos do governo interino deveria ser parar a sangria da Lava Jato.
E o julgamento final do processo ocorre num Senado no qual muitos de seus representantes (em torno de 1/3 segundo dados do site Congresso em Foco) respondem a processos criminais junto ao STF, cujo principal beneficiário é um vice-presidente inelegível por oito anos por ter ultrapassado o limite permitido de doações de campanha, condenado pelo Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo e citado por cinco delatores na Lava Jato e ainda aparece em planilhas sob investigação da Policia Federal. A última acusação foi do empresário Marcelo Odebrecht, que teria doado R$ 10 milhões ao PMDB, em 2014, a pedido dele.
Para o jornal Le Monde, as verdadeiras vítimas dessa tragicomédia política “infelizmente são os brasileiros”. Do golpe e da farsa. Golpe, porque não há crime de responsabilidade e farsa porque como mostram um conjunto expressivo de análise do processo de impeachment, independente da peça acusatória, a decisão da maioria dos senadores já estava tomada antes do julgamento, da mesma forma do que ocorreu na Câmara dos Deputados. Argumentos, provas e contra provas não teve qualquer efeito. O que ocorreu (e ainda está ocorrendo), é uma encenação, necessária ao processo e à defesa da presidente, mas consolida a derrubada do governo e a retomada do poder por velhas e conhecidas oligarquias, articulada com setores do judiciário e dos oligopólios da grande mídia, com sua máquina de mistificação e manipulação, sua desfaçatez e seletividade. São muitos exemplos. Cito apenas um: no dia 28 de agosto de 2016, a revista (ou panfleto?). Veja publicou uma matéria sobre vazamento da delação de Léo Pinheiro, da OAS. O curioso é como a revista teve acesso ao conteúdo integral de sete anexos que o procurador-geral Rodrigo Janot “decidiu jogar no lixo”. Segundo a revista “eles mencionam o ex-presidente Lula, a campanha à reeleição da presidente afastada Dilma Rousseff e, ainda, dois expoentes do tucanato, o senador Aécio Neves e o ministro José Serra”. O destaque, claro, eram as delações envolvendo petistas; “Para Lula, por exemplo, as revelações de Léo Pinheiro são letais. Lula é retratado como um presidente corrupto que se abastecia de propinas da OAS para despesas pessoais”.
No entanto, para surpresa de muitos, trouxe acusações contra os senadores Aécio Neves e o ministro José Serra. O ex-presidente da OAS mencionou o caso do Rodoanel, envolvendo José Serra e obras da Cidade Administrativa em Minas Gerais, durante o governo Aécio Neves. No dia 7 de agosto, o jornal Folha de S. Paulo já havia publicado uma matéria na qual consta que os executivos da Odebrecht afirmaram aos investigadores da Operação Lava Jato que a campanha José Serra à Presidência da República em 2010, por exemplo, recebeu R$ 23 milhões da empreiteira via caixa dois. Corrigido pela inflação do período, o valor atualmente equivale a R$ 34,5 milhões. O nome dele também foi um dos que apareceram na lista de políticos encontrada na casa do presidente da Odebrecht Infraestrutura, Benedicto Barbosa da Silva Júnior, durante a 23ª fase da Lava Jato, a Acarajé, em fevereiro: “A Folha também apurou que funcionários da companhia relatarão que houve propina paga a intermediários de Serra no período em que ele foi governador de São Paulo (de 2007 a 2010) vinculado à construção do trecho sul do Rodoanel Mário Covas”.
E qual foi à repercussão disso na chamada grande mídia e na revista que denuncia “os desmandos do PT”? Praticamente nenhuma. O destaque foi o “Triplex de Lula” como parte de propina ao PT, ou seja, não existe nada remotamente parecido com equilíbrio e isenção.
Quanto ao impeachment, concluída esta etapa, o desafio será o que fazer daqui para frente. De um lado, saber qual será a capacidade de organização e resistência dos que foram contrários ao golpe, dentro e fora do Congresso Nacional e por outro, saber se um governo sem base popular conseguirá convencer os seus aliados e setores da sociedade que o apoia, que o conjunto das medidas anunciadas como justificativas para o equilíbrio fiscal terá mesmo esse objetivo. O que há até agora são, entre outras coisas, a suspensão do programa de combate ao analfabetismo, o fim do Pronatec, do Programa Ciência Sem Fronteiras (que possibilitou milhares de jovens pobres a irem para o exterior com bolsa do governo), o apoio ao projeto aprovado no Senado que flexibiliza a exigência de ter a Petrobras como operadora única e obrigatória do pré-sal, os cortes de verbas para as Universidades Públicas (O governo prevê cortar até 45% dos recursos previstos para investimentos nas universidades federais em 2017, na comparação com o orçamento de 2016. Já o montante estimado para custeio deve ter queda em torno de 18%. Serão cerca de R$ 350 milhões a menos em investimentos para as 63 universidades federais, comparado com os R$ 900 milhões previstos para o setor em 2016), num cenário em que as instituições já vivem grave crise financeira, com redução de programas, contratos e até mesmo dificuldades para pagar contas, os aposentados devem perder direito ao salário mínimo dos trabalhadores ativos, aumento da previsão de idades mínimas para a aposentadoria (65 anos para homens e 60 anos para mulheres), o congelamento de salários (o plano defende o fim “de todas as indexações, seja para salários ou benefícios previdenciários e reajustes, entre eles o do salário mínimo, seriam negociados com o Congresso, e não haveria garantia de reposição da inflação”), a flexibilização da aplicação das leis trabalhistas, o fim da obrigatoriedade constitucional de se gastar com Educação 18% da receita resultante de impostos e o governo também deixaria de ter que aplicar na Saúde 15% de sua receita corrente líquida, enfim, embora o governo afirme que as propostas são para assegurar a geração de emprego, garantir a viabilidade do sistema previdenciário e buscar o equilíbrio das contas públicas e que todas elas respeitarão os direitos e garantias constitucionais e que “não é verdade que se debata a estipulação de idade mínima de 70 ou 75 anos aos aposentados; não será. Extinto. O auxílio-doença; não será regulamentado o trabalho escravo; não há privatização do pré-sal e não se cogita revogar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e que “Essas e outras inverdades foram atribuídas de forma irresponsável e leviana ao governo interino”, o conjunto de medidas acima referido, parece indicar que o proclamado equilíbrio fiscal é mero pretexto.
Para o cientista político André Singer, esse processo de impeachment é mais importante pelo que oculta do que pelo que revela e as consequências mais graves desse processo são os atentados à Constituição de 1988: “A observância meticulosa dos dispositivos legais do processo faz parecer que tudo funciona de modo normal. Mas, por baixo da capa de legalidade, está em curso um atentado, que pode ser mortal, ao espírito da Constituição de 1988”.
O tema de fundo é a política econômica desenvolvida pela presidente afastada: os questionados decretos de suplementação orçamentária e pagamento do Plano Safra pelo Banco do Brasil, ambos de 2015, são meros pretextos para trazer à tona aquilo que realmente incomoda: os gastos de 2014 e que “em decorrência da crise econômica, da Lava Jato e da presença de Eduardo Cunha à frente da Câmara, abriu-se uma tripla janela de oportunidade. Michel Temer enxergou a chance de chegar ao poder, os partidos conservadores vislumbraram a possibilidade de arruinar o PT e os capitais viram a oportunidade de fazer um acerto de contas com os avanços sociais previstos desde 1988 e postos em prática, em ritmo homeopático pelo lulismo”.
Assim, a condenação de Dilma representa muito mais do que a perda de dois anos: significa um “golpe profundo contra a alma cidadã da Carta constitucional vigente” cuja maior demonstração está na PEC 241, que cria o teto para os gastos do Estado. E conclui dizendo “até que ponto o conservador espírito de 2016 conseguirá desfazer o que foi acumulado em torno de 1988 só a luta real dirá. Mas convém a sociedade brasileira tomar consciência de que, por baixo dos formalismos senatoriais, há uma violenta ruptura em curso nestes dias”.