Na semana passada o Rio Grande do Norte viveu seu momento de estado sitiado, não por ação de forças policiais ou militares, mas por ação sistemática do crime organizado, insatisfeito com a medida governamental de instalação de bloqueadores de celular nos presídios da capital. Conjugando uma ação de difusão do terror psicológico junto à opinião pública (por meio de mensagens e vídeos) com ações concretas de ataques e incêndios de ônibus na capital potiguar, facções do crime organizado do RN resolveram testar seu real poder de intimidação social e a reação policial do governo estadual.
Com efeito, foram dias de tensão pública e testes de competência para o corpo de profissionais de segurança pública do RN. Evidentemente, a percepção de segurança da população não acompanhou o ritmo e grau de dispêndio de energia dos profissionais envolvidos nas ações policiais de combate ao crime organizado. Para muitos potiguares, a cidade estava entregue ao “caos”, porém não foi exatamente esse quadro o mais realista na percepção de muitos policiais. Já para esses, o momento era delicado sim, mas não significava “fracasso” da ação policial de segurança pública. Na verdade, seria mais adequado entender como dificuldade de resposta policial mais ágil, por uma série de fatores externos que transcendem a vontade dos próprios policiais.
Depois de três longos dias de trabalho policial intensivo, o resultado foi materializado na prisão de aproximadamente 60 suspeitos de envolvimento com o crime organizado e a prisão de uma liderança da facção criminosa, assim como a apreensão em sua residência de um patrimônio material e financeiro de quase um milhão de reais (aparelhos celulares, armas e R$ 300 mil em espécie), o que representou um duro golpe na agência criminosa, pois atinge diretamente a sua “economia do crime”. E o mais importante, sem baixas de vida humana. Não é pouca coisa se considerarmos as condições objetivas precárias de dignidade no trabalho dos profissionais de segurança pública no Rio de Grande do Norte. Além da dificuldade de construir uma imagem de respeito em meio ao estigma social, os profissionais de segurança pública ainda enfrentam dificuldades em articular um sentido forte de autorrealização pessoal no trabalho desempenhado. Geralmente, quando os elogios existem, é pelos atos de violência policial em si, raramente pelas demonstrações públicas de racionalidade técnica dos agentes policiais. Lamentavelmente, no Brasil, ainda não aprendemos a reconhecer como eficiente o emprego racional da ação policial que resulta em prisões com baixa taxa de mortalidade de civis, policiais e criminosos.
O engajamento e profissionalismo exemplar das forças policiais do RN
Embora do ponto de vista simbólico, a presença das forças militares produza efeitos significativos na sensação psicológica maior segurança, é preciso reconhecer que o protagonismo das forças policiais (PM, Polícia Civil e Corpo de Bombeiros) do RN no combate e no restabelecimento da ordem pública. A população não pode cair na falsa percepção de que as forças armadas foram decisivas para a restituição relativa da segurança pública, pois não é realista e razoável transferir para os militares o mérito exclusivo de eficiência na ação estatal de repressão e garantia da ordem.
Concretamente, as forças armadas chegam justamente no momento em que possivelmente a cidadã vai começar a sentir os efeitos práticos do trabalho intensivo que vem sendo desenvolvido pelos profissionais de segurança pública do RN desde a semana passada (incursões policiais em áreas de risco criminal, ação policial diuturna, virando as madrugadas no trabalho de segurança e atendimento de ocorrências). Tudo isso, num contexto de elevada tensão social e apesar das condições precárias de trabalho nas quais se encontram as forças policias do estado (diárias atrasadas, equipamentos de uso policial insuficientes, salários defasados, sobrecarga da carga horária de trabalho, elevado índice de adoecimento emocional dos policiais, e casos de violação da dignidade humana dos próprios policiais).
Politização legítima do problema de segurança pública no RN, mas com ética da responsabilidade
É legitima a articulação de críticas da oposição ao governo Robson Faria, desde que feitas com a devida responsabilidade política. Não é o momento para a oposição potiguar reproduzir o senso comum daqueles que pouco sabem ou simplesmente desconhecem sobre as reais limitações da política estadual de segurança pública. O debate político precisa ser qualificado, destacando, sim, as ausências de políticas de longo prazo, é claro, mas também se solidarizando com o governo e as forças de segurança pública estadual neste momento. Apelar para narrativas populistas, seja de esquerda ou de direita, não é racional, muito menos moralmente aceitável.
No Estado Democrático de Direito é prerrogativa constitucional das forças policiais a garantia da ordem pública, o que implica fazer uso prático do monopólio da violência física e dos dispositivos de repressão. E é preciso lembrar que cercear a liberdade de movimento do corpo no espaço físico da cidade é uma forma de violação da dignidade mais elementar do ser humano, qual seja, a perda de autonomia e soberania do seu próprio corpo. Um hiperbem de civilização que não tem cor ideológica, pois é compartilhado coletivamente.
Portanto, deve contar com a adesão e apoio de partidos de direita e de esquerda. Ainda que possamos debater e divergir sobre os fatores causais da criminalidade e da violência, e defender políticas públicas preventivas mais “dietéticas” (políticas multifocais e holísticas de prevenção à violência e ao crime) – a exemplo de políticas de educação, de combater a desigualdade etc. – , não podemos negligenciar o papel também importante das políticas “terapêuticas” (vigilância e ação policial).
Posto isso, é preciso reconhecer a decisão acertada do governo Robson Faria no sentido de instalar dispositivos tecnológicos de bloqueio dos sinais de celulares no campo de ação interno dos presídios do estado. E entender sem ingenuidade que a indignação do crime organizado passa longe de sentimentos “humanitários”. Principalmente uma facção criminosa que ameaça explodir escolas com crianças e residências familiares (nesses termos, não se dialoga com agentes da barbárie!). De fato, a suspensão do livre uso de aparelhos celulares nos presídios afeta a administração política e econômica do crime organizado, pois dificulta a comunicação entre as redes criminosas fora e dentro dos presídios. Para o crime organizado, o efeito organizacional e econômico foi o golpe mais sentido. Reconhecer o acerto do governador não significa um ato de fé na sua gestão político-administrativa. Existem também muitos erros na política de segurança pública conduzida pela gestão Robson Faria, dentre os quais, sua lentidão e inovação na capacidade de desenvolvimento de uma política de segurança pública mais consistente.
Menos bravata, mais Estado de Bem-Estar
Não foram poucos os cidadãos natalenses que aproveitaram a situação atual de crise na segurança pública para defender a ladainha desbotada do direito de posse civil de armas. Sem encontrar anteparo na realidade, muitos civis acreditam de fé que se todos “cidadãos de bem” tivessem armas, o crime organizado “não tocaria o terror”.
Contra a ficção romantizada do gênero cinematográfico de Western (diga-se de passagem, alguns filmes mais realistas do que a compreensão de realidade dos bravateiros, pois retratam conflitos de armas ambientados em contextos de época caracterizados pela ausência do monopólio estatal da violência), sempre é preciso resgatar a memória da história da violência nas sociedades ocidentais, onde o processo da pacificação social envolveu, dentre outros fatos sociais como condições necessárias, o crescente desarmamento da população civil e a concentração e monopolização do uso da violência física pelo Estado. Sobre isso, o sociólogo alemão Max Weber demonstrou de modo empiricamente convincente a contribuição do monopólio estatal da violência (juntamente da universalização do direito e da consequente mediação jurídica dos conflitos) no processo de pacificação das sociedades modernas. Posteriormente, Norbert Elias, também sociólogo alemão, confirmou Weber e ampliou a tese weberiana, acrescentando que o crescente controle social (e pacificação) nas sociedades europeias não pode ser devidamente compreendido sem considerar a função social do “controle monopolista da tributação e da força militar”.
Portanto, num quadro de crescente fragilização tributária do Estado de Bem-Estar no Brasil não é surpreendente que o crime organizado (que se alimenta do “aquecimento” de sua economia paralela criminal) se encontre relativamente mais forte na sua capacidade de ação e intervenção prática sobre um determinado território. Como bem destacado pelo filósofo Michael Walzer, a universalidade do serviço de segurança pública também é uma questão de justiça distributiva. Sendo assim, deve fazer parte de toda agenda política comprometida com a igualdade e democratização dos dispositivos de justiça. E as forças policiais podem e devem ser compreendidas como “guardiões” da justiça, liberdade e igualdade. Se seu passado no Brasil não é muito “nobre” aos olhares e memória de muitos, o sentido de sua função no presente pode e deve ser. E isso é uma questão de repensar sua função pública.
Portanto, o centro do debate público sobre segurança no RN deve gravitar em torno do modo de segurança pública que aspiramos coletivamente e não em bravatas populistas de esquerda ou de direta. Políticos de direita e de esquerda, intelectuais, universitários, trabalhadoras e trabalhadores, ou seja, a sociedade civil potiguar pode e deve contribuir para o debate público sobre a segurança pública no RN, mas com reflexividade e civilidade. Sentimentos de ódio e vingança são afetos da barbárie. E nossos profissionais de segurança precisam ser vistos e se enxergarem como agentes da civilização.