Ao assistir as cenas de depredação e saques da Escola Municipal Limírio Cardoso Dávila, em Parnamirim, senti um profundo mal-estar. Como professor de escola pública, a depredação de uma escola me atinge de maneira ainda mais forte. Uma angústia e um nó na garganta tomaram o meu ânimo rapidamente ao ver carteiras quebradas, janelas sendo estilhaçadas, portas arrebentadas, livros queimados. A destruição de uma escola machuca a alma porque os gestos e golpes de vandalismo destroem, também, futuros – e futuros que, pelas circunstâncias sociais do presente, encontram-se por si só fragilizados e vulneráveis.
Para diversas pessoas, as imagens chocam e causam uma variedade de sentimentos: indignação, raiva, aflição, desencanto, tristeza. Elas são ainda mais chocantes e fortes porque os depredadores e saqueadores são, muitos deles, alunos, ex-alunos, pais de alunos, moradores do bairro. No entanto, é preciso pensar contra ou, pelo menos, sobre as emoções que este triste e grave episódio suscita em todos nós. O episódio e sua repercussão social carregam mensagens brutais. Um ódio e ignorância sobre o que é público. Atestam um fracasso que se, de certo modo, diz respeito à educação pública, na verdade a ultrapassa enquanto um fracasso civilizatório de nossas instituições políticas e de suas promessas de inclusão dos mais vulneráveis e de fomentar aprendizado ético sobre a vida coletiva e suas normas de convivência. Essas mensagens não podem ser compreendidas por meio de adjetivações simples, tais como vândalos, marginais, ignorantes, crise de valores. A pergunta que todos estão fazendo é: o que leva pessoas a destruir e roubar um patrimônio e instituição cuja finalidade é oferecer a elas e a seus filhos um “futuro” melhor?
Procurar compreender as razões de tal comportamento não é um exercício fácil. Nossa primeira reação ao se defrontar com atos coletivos de depredação é reprovar moralmente seus autores. E isso não apenas por uma consciência cívica em relação ao patrimônio público, mas pelo que condutas agressivas de grupo representam culturalmente nas sociedades modernas. A imediata reação da “opinião pública” em condenar e classificar os populares como “vândalos”, “alienados”, “marginais” se explica pelo fato da violência coletiva de massas constituir o avesso das expectativas normativas modernas. A formação de estados centralizadores, que se arvoram o direito ao monopólio da violência legítima, a racionalização da vida coletiva, a sacralidade da propriedade privada, a ênfase na disciplina produtiva e autocontrole como virtudes e exigências sociais de comportamento, todos esses traços definidores das sociedades modernas tornam as explosões e ações emocionais de grupos condutas não somente reprováveis socialmente mas atitudes que suscitam grande temor e desprezo.
Este é o pano de fundo institucional e cultural que permite conceber a violência coletiva e popular como uma fúria cega e irracional de pessoas despropositadas e propensas à agressividade e destruição. Daí os rótulos estigmatizantes de “turba”, “ralé”, “canalha”, dados aqueles que se prestam e se engajam em depredações e saques. No entanto, se, por um lado, esse pano de fundo nos ajuda a compreender a comoção e a reprovação social, por outro, ele embota o entendimento quando se trata de compreender as razões e motivações dos ditos “vândalos”, uma vez que, seguindo essa forma de pensar, tendemos a enxergar esse tipo de ação de ajuntamentos populares como esvaziada de motivação política, racionalidade e moralidade. Nesse sentido, o quebra-quebra não passaria de selvageria, descontrole e desonestidade.
O historiador inglês E.P. Thompson ao estudar os saques e motins populares contra os armazéns de comida na Inglaterra do século XVIII nos deixou uma importante lição, qual seja: para compreender as revoltas das multidões não podemos desconsiderar os aspectos sociais e culturais implicados na experiência histórica dos grupos envolvidos. Ele se recusou a enxergar as rebeliões das massas inglesas empobrecidas contra a fome como tão somente ações definidas pelo estreito horizonte da instrumentalidade, seja ele o da agressividade gratuita do puro vandalismo e delinquência seja ele o da resposta econômica banal da satisfação de necessidades imediatas para a sobrevivência física. Para o historiador, os trabalhadores pobres agiam com base em referências morais e sentidos de justiça, alicerçados em costumes e ideias de reciprocidades e obrigações sociais prévias dos quais eles se valeram enquanto parâmetro para reivindicações e contestação acerca da legitimidade dos preços dos alimentos (cereais, pães) em períodos de escassez, do lucro injusto e abusivo com a miséria dos outros e das responsabilidades comunitárias sobre o seu próprio bem-estar.
Talvez possa ser um exagero falar de “economia moral” no episódio de Bela Parnamirim. Contudo, as ideias de Thompson são úteis como um alerta para não tratarmos ou encerrarmos a depredação da escola como criminalidade pura e simplesmente, como ações vazias que não merecem reflexão e pensamento, pois engendradas por “animais”, oportunistas e criminosos. Ao nos pautarmos por esse reducionismo, vendamos os olhos para elementos e ingredientes relevantes que nos implica a todos como sociedade – e que, por isso, exige de nós uma reflexão mais séria e aprofundada. Os rótulos de “vândalos” e “criminosos” reforçam o viés de um debate público que parece se interessar pelas classes populares somente enquanto “problema de segurança pública”. É preciso tentar compreender as motivações subjacentes que estão ali tentando se exprimir, ainda que os meios utilizados sejam execráveis. A destruição da escola revela algo que não podemos deixar de enxergar e discutir, qual seja: a naturalização do abandono institucional dos mais pobres, tratados secularmente como subcidadãos e humilhados pelas instituições públicas que deveriam servi-los como pessoas com dignidade, respeito e estima.
A despeito de se tratar de uma escola com uma boa estrutura e nova, com um pouco mais do que 2 anos de atividade no bairro Bela Parnamirim (antiga “Bela Vista”), a Limírio Cardoso Dávila está imersa em vários dos conhecidos problemas da escola pública brasileira, principalmente os relativos à indisciplina, segurança e violência. Furtos, tráfico de drogas, uso de armas, brigas ocorrem não somente nos arredores da escola, localizada em um dos bairros mais violentos de Parnamirim, mas, muitas vezes, no seu interior. A escola nunca conseguiu se constituir como um espaço capaz de filtrar as sociabilidades violentas e criminosas das ruas. Muito pelo contrário. Ao longo dos últimos anos, pais foram assaltados em frente à escola, o antigo vigilante foi assassinado a caminho do trabalho na porta do colégio, diretores ameaçados de morte e obrigado a abandonar o cargo, ameaças de bombas e invasões, intimidações de professores, suspensão de aulas em razão da insegurança e dos furtos. Aliás, a inconstância das aulas e a incerteza dos períodos de recesso sempre foram uma das principais fontes de tensão nas relações entre escola e comunidade.
Imersa numa situação generalizada de insegurança e com laços esgarçados e conflituosos com a comunidade, a rotina escolar foi, inevitavelmente, afetada, instalando-se uma verdadeira anomia institucional: mudanças de diretores, atraso e suspensão recorrente de aulas, déficit de professores, permissividade, regras institucionais não-claras que variam conforme o perfil do diretor. Estes problemas atingiram níveis insuportáveis, ao ponto de eles ocuparem a centralidade da tarefa escolar. Como diversas escolas públicas espalhadas pelos rincões e bairros pobres do Brasil, a gestão da Limírio Cardoso Dávila consistia muito mais numa espécie de gestão dos riscos advindos de problemas sociais extraescolares do que questões mais estritamente pedagógicas e didáticas voltadas às relações de ensino-aprendizagem. A violência se tornou ela própria um fator de organização da escola, seja em função da preocupação constante dos gestores com medidas de segurança seja pelas próprias identidades agressivas que os alunos cultivam entre si para sua afirmação pessoal.
Dentro desse clima organizacional anômico e violento – hostil e antipedagógico para funcionários e alunos – é que a destruição da escola foi sendo gestada sem intervenções mais efetivas por parte dos poderes competentes. Antes da depredação da escola, o atual vigia foi, inclusive, espancado em sua própria casa, conforme apurou a reportagem da Tribuna do Norte. A escola, como podemos concluir, é uma espécie de síntese do cotidiano de subcidadania, precariedade e violência que aquelas famílias vivenciam no dia-a-dia; com o agravante de que ela, como instituição, deveria ser exatamente o espaço por excelência para a construção da cidadania e realização das aspirações pessoais. A escola não existe como uma dimensão isolada, sem relação com o mundo social de seu entorno. Seus problemas e debilidades, portanto, se afinam com as demais consequências e misérias da desigualdade sobre a vida das pessoas, principalmente no tocante a efetivação de direitos.
Quando relacionamos a situação e os problemas enfrentados pela Limírio Cardoso Dávila com um cotidiano árduo e violento, que exprime a mesma precariedade institucional da escola, no âmbito do atendimento à saúde, da segurança, dos transportes públicos e da instabilidade dos empregos, temos, então, um caldo social bastante propício para comportamentos desviantes e violentos. A subcidadania produz uma ignorância em relação ao que é público, sua função e importância. Mais ainda: ela produz um rancor e ressentimento social que se acumula nas frustrações experimentadas no cotidiano com as instituições públicas, as quais, muitas vezes, ao invés de assegurar dignidade e respeito às pessoas e famílias humilham-nas com sua ineficiência, julgamentos e indiferença. A escola, desse modo, passa a ser percebida como mais uma instituição que “não presta”, isto é, como denegadora de respeito social, atualizando experiências frustradas com outras instituições e tornando a experiência escolar vivida pobre e limitada em termos de identificação afetiva e significativa por pais e alunos, “uma escolaridade sem outra finalidade que ela mesma”, como diria Pierre Bourdieu.
Sem os devidos canais de reivindicação e expressão de demandas coletivas, esse acúmulo de ressentimento e frustração social somado a sociabilidade violenta e sua rotinização, tornam o quebra-quebra, com efeito, se não uma estratégia consciente, embora truculenta, da população de se fazer ouvir, e, pela força obrigar as autoridades a agir no sentido de oferecer serviços que os tratem como cidadãos de direito e estima, pelo menos seria uma espécie de vingança, uma descarga que produz algum alívio das tensões psicológicas e sociais interiorizadas. Este me parece ser a questão central a se reter do episódio, isto é, o mal-estar social, que deixado ao largo pela indiferença e incompetência dos poderes e gestores públicos no trato com a educação e demais serviços públicos, encontra na violência e na destruição uma forma de expressão dos descontentamentos coletivos.
No caso da Limírio Cardoso Dávila, podemos afirmar que ela sucumbiu diante da realidade social violenta do bairro, e de todos os sentimentos sociais e contradições que a subcidadania e a desqualificação social incitam. A própria reação de parte da opinião pública em rebaixar o caráter dos moradores da localidade com afirmações generalistas e estigmatizantes como “são animais”, “é uma gentalha sem educação nem cultura”, propondo até mesmo a criação de um “lixão” porque “é isso que esse ‘povinho’ merece”, exprime a percepção do status desqualificado e subcidadão que os moradores do bairro já sofrem por outros meios. Sem o suporte político de outras instituições de cidadania, a escola se tornou, então, particularmente vulnerável diante de questões que ultrapassam o trabalho de professores, diretores e coordenadores pedagógicos.
Não se trata de retirar as responsabilidades individuais e penais, as quais devem ser, certamente, apuradas, nem de minimizar a barbaridade que foi cometida. Trata-se apenas de pensar o dito “vandalismo” sob outro ângulo, inseri-lo num contexto de relações e experiências prévias em que a escola, as famílias e os estudantes estão enredados. A depredação da escola precisa ser pensada, também, como um sintoma de problemas subjacentes graves vivenciados cotidianamente pelos “de baixo” da sociedade na sua relação com as instituições. Precisa ser entendido em sua gênese social e em termos dos efeitos da desigualdade sobre as condutas, sentimentos e os significados atribuídos às instituições. Problemas e situações vividas que não encontram vazão nos canais adequados (sindicatos, movimentos sociais, coletivos, partidos, associações etc.), ou seja, capazes de transformá-los em ação política organizada, no sentido forte do termo, através do diálogo e da participação junto as autoridades locais.
Sob circunstâncias socialmente perversas do abandono institucional, a escola, então, virou um bode expiatório para descarregar toda raiva e frustração social produzidos por um cotidiano de subcidadania e precariedade, incapaz de fomentar os aprendizados éticos sobre o valor e o significado da palavra “público”. Este é o solo fértil em que o vandalismo frutifica e ao mesmo tempo transforma-se num meio para transmitir uma mensagem brutal de indignação e injustiça contra a rotinização das experiências de desrespeito social.
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Foto principal: Alex Regis