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O monstro de 10 anos

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“Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu – O minotauro mal se defendeu”.

A história conta que o rei Minos recebeu do Deus dos mares um belo touro branco como forma de aprovação de seu reinado frente seus adversários. Minos posteriormente deveria sacrificar o Touro em homenagem ao Deus dos mares, mas não o fez por admirar a beleza do animal. O Minotauro foi uma punição dada por Poseidon ao Rei de Creta. Por ter traído Poseidon, a esposa de Minos foi condenada a apaixonar-se pelo belo animal que tinha sido enviado pelo deus dos mares. O monstro da mitologia grega, o Minotauro, é fruto de uma união entre uma rainha cretense e um touro. O indivíduo nascido desta união só consegue alimentar-se de uma coisa: humanos.

A medida que foi crescendo, Asterion, que era metade homem e metade touro, começou a ficar violento. Sua metade selvagem começou a despertar e um labirinto foi feito, onde o trancaram. Para sua alimentação, jovens de outras cidades eram jogados dentro do labirinto. Ali o Minotauro viveu até o dia em que Teseu, o herói ateniense, matou-lhe com um golpe na cabeça.

Quando pequenos sempre vibramos com as histórias de Hércules ou Teseu derrotando o terrível monstro. Os ensinamentos das histórias estão relacionados ao respeito aos deuses, a manutenção da palavra entre outras virtudes.

Teria o Minotauro, o monstro, algum ensinamento a trazer? E se a história fosse contada pelo monstro? Como seria? Como iria defender-se ou justificar-se alguém que só consegue alimentar-se de outros humanos?

Dando-se conta da condição do Minotauro, o famoso escritor argentino Jorge Luis Borges, escreve um conto narrado pelo próprio monstro chamado “A casa de Astérion”. Nunca tentamos imaginar a versão do Minotauro sobre sua própria vida. Mas quando analisamos rapidamente, como o fez Borges, percebemos uma terrível condição.

No conto de Borges, Teseu, o herói, vai até o labirinto a fim de matar o Minotauro. Ao deparar-se com o monstro ele surpreende-se por encontrar não uma besta-fera insana, mas alguém que compreende sua condição de monstruosidade e após certa vivência e reflexão lamenta por sua própria existência: “um deles, na hora da morte, profetizou que um dia vai chegar meu redentor. Desde então a solidão não me magoa, porque sei que meu redentor vive e que por fim me levantará do pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? — me pergunto. Será um touro, ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? ou será como eu?”

Ainda de acordo com o conto Teseu volta de seu triunfo um pouco decepcionado e reclama: “– Acreditarás, Ariadne? O minotauro mal se defendeu”.

Borges nos coloca que a condição do minotauro e o sentimento que costumamos nutrir por ele poderia ser o de lamento, no lugar de ódio. Lamentar pelas pessoas mortas pelo monstro e lamentar também a condição do monstro, de só poder comer carne humana e de ter sido enviado como forma de punição, nada tendo feito ele para merecer nascer e crescer em condições tão hostis.

Mas parece que não aprendemos nada mesmo. Nem com o mito grego nem com Borges.

Minotauros materializam-se diariamente no Brasil. São gerados dia após dia, dezenas deles. Perdidos nos labirintos das cidades e suas intermináveis ruas sem saída. O mais recente minotauro tupiniquim, morto aos 10 anos e tal como o minotauro, com um golpe na cabeça, ao que noticiam os jornais, era filho de um casal de pessoas com sérios problemas na justiça (o pai está preso por tráfico de drogas e a mãe já foi presa por furto).

Ciência significa conhecimento organizado. Quando debatemos o tema violência no campo da ciência é preciso também organizar o conhecimento.  Em entrevista a revista Super Interessante o antropólogo Luiz Eduardo Soares, afirma: “O solo mais firme e fundo da mediação que evita o crime é o reconhecimento de seu valor que a criança recebe na família e no seu grupo social. Por outro lado, se a criança só experimenta rejeição, ressentimento, insegurança e ódio de si mesma, ela tende a não se identificar com esses valores da sociedade”,. É claro que isso depende dos valores que importam para os pais e amigos: faz diferença se ela cresce entre pessoas que acham bacana ser “esperto” e “levar vantagem” ou se o comportamento ideal é ser “trabalhador” e “honesto”, completa a revista.

Tal como afirma boa parte das teorias científicas as normas da civilidade não são facilmente aprendidas. A distinção sobre o que é certo e errado, ao contrário do que imaginamos não é algo inato. Não há nada de natural nos valores. Ou temos vários humanos ao nosso redor nos ensinando de forma incessante a maneira certa de se portar, ou cresceremos como animais selvagens.

Chegamos a um ponto tal de anomia social que naturalizamos o crescimento em condições hostis, esquecendo que tal naturalização é uma posição anti-democrática. A ideia normalmente aceita nas democracias é que todo cidadão terá igualdade de oportunidades. Isto implica educação, atenção, cuidado e uma série de outros fatores que influenciam na formação psicológica dos indivíduos. Nisto consiste a civilidade. Uma ação contínua sobre o animal humano para controlar suas pulsões e direcionar suas ações em uma direção desejada.

Neste sentido, um bandido de dez anos significa muito. É um marco simbólico do fracasso do Estado enquanto gestor e da sociedade enquanto valores. O Estado fracassa já que não consegue dar a devida tutela para pessoas em nítida situação de fragilidade social. E a sociedade fracassa por disseminar ódio, no lugar de lamento. Quando encontramos um minotauro morto no lugar de lamentar por sua condição, achamos bem feito.

Aprendemos muito pouco com os gregos e com  Borges.