Adson Kepler Monteiro Maia[1]
PARTE I
- Introdução;
Não obstante a análise crítica desenvolvida neste artigo (que apesar de construtiva não está imune a interpretações equivocadas), gostaria de me antecipar ressaltando a importância da obra e da biografia do antropólogo Luiz Eduardo Soares para os atuais estudos e debates relacionados à segurança pública brasileira. Estudos e debates que se notabilizaram pelo caráter sempre inovador e pelo questionamento firme (mas propositivo) das falhas inquestionáveis de nossas atuais políticas de segurança pública e cidadania. Isso tudo além da incansável luta pela observância do universalismo democrático previsto em nossa Constituição da República pelas instituições policiais de todos os entes federativos.
Faço questão de mencionar dois grandes legados deixados por Luiz Eduardo Soares no estado do Rio de Janeiro quando de sua passagem pela Secretaria de Estado da Segurança como Subsecretário: o Instituto de Segurança Pública e a Delegacia Legal. Duas ações de inovadoras que contaram com a maestria desse grande estudioso e pesquisador. Se não foram efetivadas exatamente como foram idealizadas é o de menos importância. Porém, seguramente contribuíram para provar que o sonho de mudanças significativas em benefício da sociedade e dos operadores de segurança é um sonho possível.
Este artigo tem um propósito informativo, não tendo ênfase na teoria científica do Direito ou das demais Ciências Sociais. O importante aqui é aprofundar o debate de questões sensíveis da área de segurança pública sem o viés conflituoso das disputas corporativas e do jogo político que essas disputas envolvem.
Não somente no final da década de 90, mas ainda hoje se buscam uma forma de se resolver os problemas de nosso sistema de segurança. Todos sabem que existem falhas de integração entre as polícias no âmbito estadual e federal, bem como falhas de integração entre as carreiras no âmbito interno da polícia federal e de várias polícias estaduais. Ninguém discorda disso e não é o diagnóstico do problema que se discute aqui. O propósito desse artigo é, no cenário atual, enriquecer a discussão de uma das principais soluções propostas que foi batizada como a solução do “ciclo completo” pelo referido professor e pesquisador.
Dentro desse espírito de transformação da nefasta realidade da segurança pública no Brasil surgiram duas ideias (ambas intrinsecamente ligadas entre si), amplamente difundidas pelo professor Soares, que peço a devida vênia para discordar: a desconstitucionalização da matéria de segurança pública em nossa pátria republicana e o chamado “ciclo completo” de polícia.
A primeira ideia por ser contrária ao nosso modelo constitucional consagrado em 1988, também muito presente em outras nações que seguem o direito romano-germânico, que J.J. Gomes Canotilho chama de constituição dirigente e também de constituição de garantia, pois preserva direitos fundamentais indispensáveis para o Estado Democrático de Direito[2]. Da segunda ideia discordo por entender que não só ela, como a própria terminologia criada como espécie de slogan político da proposta estaria equivocada. Não consigo identificar o fenômeno da aplicação da Lei[3] (Law Enforcement) como um fenômeno cíclico ou dotado de qualquer tipo de circularidade dentro de sua complexidade. Sequer encontrei a terminologia fora de obras brasileiras e sítios do nosso ciberespaço, alguns sérios e outros de pura bazófia e de interesses exclusivamente corporativistas.
A desejada melhoria no problema da falta de integração dos órgãos de segurança se desvia do foco sobre a maior ou menor especialização das polícias, bem como da discussão internacional sobre a necessidade de desmilitarização das mesmas (inclusive da Polícia Civil em alguns aspectos), bem como se silencia sobre a necessidade de uma pesquisa multidisciplinar profunda sobre a matéria para uma reforma bem planejada e equidistante de questões de interesse meramente corporativista.
- O Surgimento da temática do “ciclo completo” de polícia: o início, o fim e o meio;
A primeira vez que li sobre a crítica a ausência do “ciclo completo” nas polícias civis e militares foi na obra “Meu Casaco de General” de Luiz Eduardo Soares. Um livro realmente instigante e revelador editado no ano 2000. Na página 265 o pesquisador informa o que se segue:
“(…) só no Brasil e em pouquíssimos países uma instituição (a polícia militar) patrulha as ruas e faz o trabalho preventivo (e o repressivo, quando necessário), enquanto outra (a polícia civil), faz o trabalho investigativo, sem dialogar com a primeira e frequentemente competindo com ela. Os Estados Unidos tem mais de 18.000 polícias, que são municipalizadas. Mas todas elas cumprem o ciclo completo do trabalho policial. O problema não é número de forças policiais; o problema é a divisão do ciclo”.
A comparação de realidades brasileiras com as realidades de outros países de configurações sociológicas, culturais, econômicas e de gestão de políticas públicas totalmente diferentes é muito complexa, mas de fato é a principal ferramenta de pesquisa científica válida para o estudo de uma realidade social. É o que nas Ciências Sociais chamamos de método comparativo[4], que obviamente deve seguir regras epistemológicas claras. A comparação também é presente na Ciência do Direito através do Direito Comparado e na Ciência da Administração através do benchmarking[5] usado como ferramenta de planejamento estratégico.
Apesar de legítimo o uso da comparação nem sempre resulta em verdades confiáveis do ponto de vista científico. Sem a pretensão de esgotar o tema nem me aprofundar mais do que este artigo permite, explico porque penso assim.
Para dramatizar a imagem negativa que o povo brasileiro tem de si mesmo e de suas instituições se emprega o “outro” privilegiado, no caso, os Estados Unidos, exemplo insuspeito, sem mencionar, por exemplo, que até o final da década de 60 as polícias civis tinham segmentos fardados e atribuições preventivas definidas em lei, bem como as polícias militares investigavam nas pequenas cidades e áreas rurais de forma semelhante ao atual modelo português e, principalmente, o modelo francês, que contam, respectivamente, com as carreiras de inspetores de polícia e comissários de polícia de nível superior (não exclusivamente, mas preferencialmente com formação em Direito).
Os problemas da falta de comunicação e de integração no dualismo policial brasileiro são inegáveis, mas a dramatização desse dualismo tornando-o um mal em si e não a falta de integração, propriamente, é o que me fez escrever este artigo cujo o título é inspirado noutro dualismo dramatizado com referência nos Estados Unidos: a sociologia dual de Roberto Da Matta. Isso na perspectiva do sociólogo potiguar Jessé de Souza, que encampa a tese da dramatização dual.
O sociólogo Jessé de Souza também fez críticas a correição teórica de Soares por razões semelhantes às empregadas na crítica ao antropólogo Da Matta. Em resumo trata-se de uma crítica a análise fragmentária da realidade.
No trecho acima do livro me chamou a atenção a comparação com os Estados Unidos. Por que não com o Quênia? Também uma digna ex-colônia do Império Britânico. Um país em desenvolvimento como o Brasil, mas que foi influenciado tanto pela Common Law como pelo modelo inglês de polícia: corporação de estatuto civil com especializações e departamentos internos com graus de autonomia variáveis dentro da mesma organização (o que politicamente se convencionou chamar no Brasil de polícia de “ciclo completo”). No Quênia, como em várias ex-colônias do Império Britânico se usa o modelo de “ciclo completo” proposto por Luiz Eduardo Soares.
Também é o caso da Jamaica, a monarquia parlamentarista caribenha cujo chefe de Estado é a Rainha Elizabeth II. O “ciclo completo” jamaicano não impediu que o país (um dos seis países mais violentos das Américas) tenha tido em 2015 um índice de homicídios de 45 homicídios por 100.000 habitantes, segundo dados das Nações Unidas divulgados pela imprensa internacional[6]. A violência homicida é crescente naquele país e comprova a pouca relevância do formato da polícia adotado diante da ausência de políticas públicas adequadas.
Noutra obra do mesmo autor intitulada “Segurança Pública tem Saída”, editada inicialmente em 2006, também se aborda o tema do “ciclo completo”, dessa vez com mais detalhes, junto de outras sete propostas de reformas legislativas no âmbito do Congresso Nacional. Concordo com a maioria delas, com poucas ressalvas pontuais, mas discordo justamente da primeira proposta que engloba a desconstitucionalização radical das formas de organização e atribuições das polícias para permitir eventuais unificações das organizações no âmbito estadual e federal.
Essa primeira proposta, a única que achei incompatível com a realidade de nossos problemas de segurança em comparação com a própria realidade de outros países em desenvolvimento, foi incorporada a proposta da carreira única como estratégia política para angariar o apoio dos sindicatos de agentes civis e federais, mais associações de praças das polícias militares. Todos eles são integrantes de carreiras que há anos sofrem com problemas de distorções salariais causadas pelo não cumprimento do art. 39, §1º, incisos I, II e III da Constituição da República. Essa estratégia política se transformou na Proposta de Emenda Constitucional nº 51/2013, que assim como as outras propostas semelhantes possui várias inconsistências técnicas, apesar do apelo aos reais desequilíbrios remuneratórios que enfrentamos.
As disputas por espaço, poder e por melhor remuneração entre as carreiras são disputas sociais que ocorrem em todo mundo. São inevitáveis e até benéficas quando promovem o equilíbrio social, porém no Brasil ultrapassam os limites do razoável. Nos últimos anos essas disputas por espaço entre carreiras de agentes públicos deixaram de ser um desvio normal característico de qualquer sistema social para ser a “regra do jogo” de uma absurda e maléfica (para o país) teoria de jogos. Toda ação individual ou coletiva nesse processo de disputa que fomentem os conflitos devem ser, a meu ver, trabalhadas com muita responsabilidade.
Assim como na primeira obra de Luiz Eduardo Soares, apesar de mais detalhes sobre o assunto, o tema do “ciclo completo” não foi aprofundado com indicadores de segurança e da violência homicida do Brasil e dos países que adotam os diferentes modelos, com estudos multidisciplinares de direito comparado, com benchmarking, com discussões de gestão de políticas públicas, etc. Uma reforma dessa dimensão jamais poderia ser desacompanhada de abordagens profundas, instruídas com indicadores e conhecimentos de vários campos das Ciências Sociais, Jurídicas, da Administração e da Economia, e com a participação de amplos setores da sociedade.
Em pesquisas posteriores busquei qualquer outro cientista social ou especialista em segurança tratando do tema aqui e alhures, antes do insight nacional sobre o “ciclo policial”, mas todos os trabalhos e estudos realizados surgiram ou foram divulgados a partir do final da década de 90, sempre posteriores ao surgimento do tema na obra de Soares. Nada encontrei sobre discussões ou debates pertinentes a questão do “ciclo completo” na literatura ficcional ou técnica estrangeira. Inclusive, nada encontrei quando pesquisando nas redes sociais e sítios eletrônicos dos países que se supõe adotar o modelo dividido de polícias que seriam, principalmente, os países lusófonos. Apesar dos esforços só encontrei referência ao “ciclo completo” aqui mesmo entre nós no Brasil. Por isso e por outros motivos, mencionei-o como “ciclo (in) completo” no título deste artigo.
O sociólogo Robson Sávio Reis Souza, por exemplo, cita o tema em sua extensa obra, mas em nenhum momento o enfatiza como início da solução de nossos problemas de segurança. A ênfase de sua obra é o diagnóstico dos problemas atuais e o tratamento dado pelas políticas públicas nacionais ao tema nos últimos anos. Há inclusive crítica a ausência de medidas efetivas e a ausência de integração entre as polícias. O “ciclo completo” foi enfatizado apenas no prefácio, escrito por Soares[1].
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Adson Kepler Monteiro Maia é delegado de polícia civil, especialista em Direito Internacional e também em Ética pela UFRN, com aperfeiçoamento em Gestão e Avaliação de Políticas Públicas pela Escola de Governo/FGV.
[1] SOUZA, Robson Sávio Reis. Quem comanda a segurança no Brasil: Atores, crenças e coalizões que dominam a política nacional de segurança pública. São Paulo: Ed. Letramento, 2015. Citação a página 15.
[2] AC 257961 2001.02.01.003202-2/TRF 2ª/DJU: 07/04/2005 A exemplo dessa Ação Civil Pública sobre a suspensão do serviço de telefonia de um órgão da Polícia Federal se verifica que grande parte da jurisprudência considera a segurança pública um direito fundamental em decisões judiciais que beneficiam o cumprimento desse dever por parte do Estado.
[3] Preferimos a terminologia “aplicação da Lei”, tradução de Law Enforcement, do que Segurança Pública, não por apego a estrangeirismos, mas sim porque este termo, bastante usado nos países de línguas neolatinas como o Brasil, é muito restrito as forças policiais e indiretamente endossa uma visão cultural elitista e fragmentada de que o Judiciário e o Ministério Público devem ser tratados separadamente na problemática social de aplicação da Lei.
[4] SCHNEIDER, Sergio; SCHIMITT, Cláudia Job. O uso do método comparativo nas Ciências Sociais. Cadernos de Sociologia, Porto Alegre, v. 9, p. 49-87, 1998.
[5] Benchmarking é o processo contínuo e sistemático que permite a comparação das performances das organizações e respectivas funções ou processos face ao que é considerado “o melhor nível”, visando não apenas a equiparação dos níveis de performance mas também a sua superação. REZENDE, Denis Alcides. Planejamento estratégico público ou privado: guia para projetos em organizações de governo ou de negócios. São Paulo: Atlas, 2011.
[6] Disponível em<http://www.20minutos.com/noticia/32705/0/aumentan-los-homicidios-en-jamaica-en-20/>. Acesso em 08/05/2016.