No dia 12 de abril deste ano emocionei-me ao assistir um vídeo em que uma mulher negra, com um enorme e imponente black, a estudante de medicina Suzana da Silva falou diante de uma plateia no Palácio do Planalto. Sua fala começou assim: “Eu tinha tudo para ser uma excelente babá, faxineira ou empregada doméstica. Estava marcado na minha história. Era meio que determinado para mim.” A frase de Silvana remete a muito daquilo os cientistas sociais compreendem por reprodução: a ideia de que os sujeitos pertencentes a determinados extratos sociais, em meios as lutas cotidianas que compõe as sociedades, podem ser material e simbolicamente impedidos, ou incentivados, a adentrarem determinados espaços.
Tal situação, por não ser natural, pode ser modificada, mas para isso faz-se necessário, como lembra o sociólogo Norbert Elias, que ocorram dois fatores: que os sujeitos marginalizados se deem conta dos fatores materiais e simbólicos que os mantém naquela situação. Esta “tomada de consciência” não vem sem muita luta, já que estarão uma nova posição: de disputa num campo social que já tem seus grupos privilegiados, os quais não pretendem sair deste lugar. Para isto, os sujeitos que sempre participaram dos jogos sociais de maneira periférica precisam se unir ao redor de um objetivo comum – segundo fator apontado pelo referido sociólogo – o que no caso das negras e negros, passa pela construção de um movimento negro plural e diverso, mas que tem, dentre tantos, o objetivo de exercer plenamente sua cidadania, não sendo prejudicados, rebaixados, vistos como não capazes apenas pela cor da sua pele; fibra ou estilo do seu cabelo; ou mesmo mortos, como ocorre todos os dias pelas ruas do Brasil.
Sem duvidas que essas lutas ao longo das últimas décadas, ou mesmo aquelas travadas durante o período da escravidão, tornaram possíveis que uma mulher negra se tornar ‘médica e não empregada doméstica’. Retomando a fala de Suzana Silva, gostaria de convidar as leitoras e leitores a uma questão que vêm me inquietando – as quais, felizmente, fazem coro com outras pessoas. A estudante falou em seu depoimento a seguinte frase: “A casa grande surta quando a senzala vira médica.”.
Não faz muito tempo, numa reunião do Afronte – coletivo de negras e negras da UFPE, do qual faço parte – debatemos acerca dessa frase que tanto me incomodava. Esse debate se estendeu para outras conversas, e todas havia a concordância de que era necessário, primeiramente, expor tais questões com muito respeito aos usos que outros militantes fazem desta frase, tendo em vista uma segunda questão: ela vem sendo usada como palavra de ordem, e com isso ganha força para além das análises que pudéssemos discordar. Por isso, meu convite aqui é para refletirmos em específico sobre alguns elementos dessa frase. É comum que os movimentos sociais resiguinifiquem termos usados pro grupos dominantes, de modo a transformar em símbolo de resistência aquilo que era instrumento de opressão. Bicha, macumbeiro, e até mesmo maconheiro, são expressões que passaram por esse processo.
No entanto, gostaria que pensássemos juntos acerca do possível peso histórico, político e cultural que no binarismo “casa-grande & senzala”. Se nos detivermos apenas a este último é possível compreender o tamanho incomodo causado. Há termos e expressões que são mais difíceis de serem resignficados, e outros que de tão pesados tornam essa tarefa impossível. O que era a senzala se não o lugar onde negras e negros eram amontoados e obrigados a ali permanecerem até que raiasse um novo dia, quando seriam obrigados a trabalhar como máquinas até sua exaustão?. Se foram também nelas onde muitas fugas foram planejadas, isto não se deu por escolha, mas pela falta dela! Isto certamente não as tornava um espaço simbólico de resistência.
Não seria mais apropriado trocarmos senzala por quilombo? Não eram os quilombos – a despeito das relações de poder que os entrecruzavam internamente – vistos como um afronta a Coroa Portuguesa? Não são nas senzalas onde permanece a maior parte da população negra, isolada simbolicamente, fadada a marginalidade, seja dos subempregos, do tráfico e das prisões, isso quando chegam a vida adulta? Não são as senzalas que, cravadas na alma de tantos, fazem com quem muitos descreiam da sua própria capacidade, e reféns de uma meritocracia que os escanteia, acreditem que há um lugar das pretas e dos pretos, e que não devem sair deles? Quando há qualquer tipo de ruptura com estes ciclos não é da senzala que saímos, seja quando entramos em uma universidade, ou nos formamos em medicina, jornalismo, ou engenharia? Não somos quilombos nesse momento, e não se tornam pequenos quilombos os lugares por nós ocupados, lugares que ocupamos debaixo de muita luta de quem ainda acredita que não são para “gente como nós”? Se “todo trem tem um pouco de navio negreiro”, as prisões, físicas ou internas, têm muito das senzalas, e é necessário rompermos com essas cadeias, de forma a colorirmos das mais diversos tons de preto os espaços desse país, rompendo com os monocolorismos que ainda se impõe, mantendo uma estrutura de dominação que ainda teima em se manter de pé… Mas isso há de mudar! Por isso nossa luta, acredito, deve ser sempre por mais quilombos, e pelo fim das senzalas.
Nesse sentido, as políticas de ação afirmativa têm um papel importante, e, por mais que possam ser vistas como um “mal necessário”, servem tanto para expor a desigualdade estrutural em que nossa sociedade foi construída, como para catalisar o processo de representatividade. Não há duvidas que faz diferença para autoimagem de uma pessoa ver que há outros parecidos com ela desempenhando diferentes papéis. E já que ainda estamos lidando com um sistema capitalista, ao menos que a pirâmide, sempre desigual, que o sustenta, reflita mais a mistura das, base do mito de origem do Brasil, esteja mais colorida.
Por mais Suzanes da Silva, Joãos, Marias, e tantas e tantos! Que se multipliquem, sejam quilombo e não senzala, onde quer que estejam, até que de fato as casas-grandes contemporâneas, tremam. Por hora, a irritação parece vir de uma classe média, predominantemente não negra, que vê de longe, e ainda timidamente, os espaços que antes ocupava sendo disputados com aquelas que cuidam de seus filhos e filhas, ou com aqueles que apenas abrem e fecham os portões de seus apartamentos, ou fazem a seguranças dos espaços que estavam acostumados a serem os únicos a consumir.
Se em países como a Alemanha há uma vergonha nacional quando o assunto é o nazismo, parece que estamos muito longe no Brasil de termos algo parecido no que diz respeito a escravidão. Chegamos ao absurdo, por exemplo, de termos um motel em Recife com o nome Senzala, que estampa em sua fachada e propagandas, a imagem de uma mulher negra. Tal situação parece querer lembrar qual o lugar dos negros, como se aquele fosse nosso habitat natural. Por outro lado revela uma reação de quem não quer sair de sua zona de conforto, e que para isso tentará nos manter no lugar de onde, segunda suas percepções racistas, veladamente perversas, e mortalmente eficazes, acreditam que nunca deveríamos ter saído!
Nesse sentido, as políticas de ação afirmativa têm um papel importante, e, por mais que possam ser vistas como um “mal necessário”, servem tanto para expor a desigualdade estrutural em que nossa sociedade foi construída, como para catalisar o processo de representatividade. Não há duvidas que faz diferença para autoimagem de uma pessoa ver que há outros parecidos com ela desempenhando diferentes papéis. E já que ainda estamos lidando com um sistema capitalista, ao menos que a pirâmide, sempre desigual, que o sustenta, reflita mais a mistura que é a base do mito de origem do Brasil, esteja mais colorida. E nenhuma conquista nos deixe deslumbrados de modo que percamos o foco de uma luta que só terá fim com a conquista de uma sociedade sem desigualdades e de relações horizontais.