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Eu não sou cachorro não: Luiz Almir e a desvalorização dos professores

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Por Diego José Fernandes Freire

(Professor e Historiador).

luis-almirNa manhã desta última terça-feira (dia 13/04), na câmera dos vereadores de Natal-RN, um fato específico chamou a atenção. Em uma audiência pública, voltada para explicar o corte ilegal do pagamento dos professores municipais que participaram da última greve em educação, o vereador Luiz Almir (Partido da República – PR) dirigiu-se a um grupo de professoras que estava acompanhando a sessão com palavras nada educadas. Ao fazer um pronunciamento em favor dos pais cujos filhos teriam sido prejudicados por causa da greve e as aulas perdidas, o vereador acabou não encontrando a esperada receptividade das docentes presentes. Estas, então, reagiram a fala do vereador. Diante disso, dirigido-se a sua platéia do plenário e às professoras,  Luiz Almir, sem nenhum decoro, cravou as seguintes palavras: “Não quero voto de vocês não, bando de bestas. […] Podem latir aí, até dar uma dor” (veja o vídeo neste link: http://oportaln10.com.br/pode-latir-ai-diz-luiz-almir-aos-professores-durante-audiencia-44978/).

Além de uma clara atitude de desrespeito para com as professoras presentes e para com toda a classe docente, a fala do vereador Luiz Almir indicia também um fenômeno social mais geral que, infelizmente, a nossa sociedade atravessa nas últimas décadas. Trata-se da situação extremamente desprestigiada da figura do professor. O profissional de ensino, seja homem ou mulher, encontra-se hoje em dia em uma situação de profunda desvalorização social. O status que outrora gozava socialmente, a importância que detinha em tempos passados, foi praticamente esvaziado atualmente. Se antes um professor era facilmente reconhecido na rua, dada suas roupas distintas, sua postura particular, seu saber livresco distintivo, entre outros atributos específicos, nos dias que correm o docente iguala-se com a massa de homens e mulheres comuns, desprovida de traços e marcas particulares capazes de lhe distinguir socialmente. Entre os trabalhadores, o professor se passa facilmente como mais um entre tantos outros precarizados, explorados, desmotivados e insatisfeitos com as condições de trabalho. Parece que nada mais consegue lhe destacar ou lhe elevar socialmente.

Até mesmo o saber, que durante muito tempo foi a principal marca distintiva da classe docente, parece não mais realçar sua figura. Os termos que Luiz Almir utilizou para atacar as professoras afronta justamente o que o docente teria de mais valioso, a saber, sua capacidade de pensar, seu papel de produtor de conhecimento. Ao valer-se do adjetivo “besta” e da metáfora do latido canino, o vereador acabou por animalizar a classe professoral, rebaixando-a duramente. Ora, bestas e cachorros possuem uma modesta inteligência. Tais animais não se distinguem pela capacidade de pensar e de raciocinar, como nós humanos. Na cultura ocidental moderna, bastante moldada pelo pensamento evolucionista, o qual diferencia em termos evolutivos animal e homem – estando o primeiro no início do processo e o segundo no topo da evolução -, animalizar o outro é sempre inferiorizá-lo, rebaixá-lo aos rés do chão das coisas sem muito valor. Tal qual um negro chamado de macaco, ou um judeu insultado de rato, fez o dito vereador do povo, ao animalizar a classe dos profissionais de ensino, na medida em que a estratégia de rebaixamento se fez presente para desqualificar o outro.

Ressaltemos também que o adjetivo “besta”, bastante utilizado na região Nordeste, além desse sentido animalesco, possui também um significado próximo a insensatez. Pessoa besta é justamente aquela pessoa dita lesa, que não distingue as coisas muito bem, que apresenta certos problemas cognitivos, que se atrapalha facilmente com o entendimento do mundo. O termo besta é reservado para indivíduos que tem dificuldades de racionar e de apreender as coisas. Besta: palavra de duplo sentido, mas que achincalha o mesmo alvo, a racionalidade humana e sua capacidade de discernimento.

Eis o paradoxo que o xingamento de Luiz Almir coloca: como alguém pode animalizar uma classe profissional que trabalha justamente com o intelecto, com o raciocínio, atributos tradicionalmente valorados como humanos? Como professoras podem ser insultadas de bestas e cadelas se elas lidam com o pensamento, se são profissionais que a todo momento valem-se da racionalidade, do pensar, do discernimento crítico?

É um grande disparate animalizar pessoas, dado que somos todos iguais e compartilhamos de uma mesma humanidade. Porém, no caso dos professores, a animalização torna-se um ultraje ainda mais ofensivo, pois ataca aquilo que mais justifica socialmente sua razão de ser, qual seja:  sua capacidade cognitiva. Se pomos em cheque a dimensão racional do professor, como ele poderá ensinar assuntos que demandam inteligência e raciocínio? Se o julgamos como um animal que late ou como uma besta de carga, como ele poderá construir conhecimentos? Animalizar a categoria dos professores é atentar contra sua própria essência, é destruir o que ela tem de mais importante e identificador. Retirando-lhe o saber, a sua face racional, o fundamento de sua profissão cai também por terra, quase nada lhe restando. A falava ofensiva de Luiz Almir acabou por despir o professor de seus trajes cognitivos basilares.

As palavras vexatórias só puderam ser ditas a partir do contexto de profunda desvalorização social do professor. Quando esta figura profissional encontra-se esvaziada simbolicamente, pode-se dizer qualquer disparate contra ela, sem ser necessário sequer medir as palavras e o teor da ofensa. Ao nível da fala e do discurso, é como se os docentes se encontrassem desprotegidos contra certos ataques. Outrora seria impensável desqualificar animalescamente aquele que ensina as pessoas e constrói conhecimentos para a sociedade. Ocorre que hoje nenhum professor é mais um sujeito blindado, diante do qual a reverência e a admiração logo se imporiam. Vivemos uma época  em que nem os alunos nem muito menos os pais respeitam mais os professores. A grande mídia acusa os professores de doutrinadores políticos, mães e pais jogam toda a educação de seus filhos nos ombros dos docentes, o Estado nega-se a proporcionar a devida estrutura de ensino-aprendizagem e a sociedade não reconhece como deveria o trabalho daqueles que dedicam sua vida à escola e a proporcionar futuros promissores para o país e para os próprios indivíduos. O professor se tornou um alvo fácil e vulnerável da sociedade.

Nesse sentido, Luiz Almir acabou por expressar uma fala que é não só dele mas de muitos. O grito do vereador é na verdade um eco da própria sociedade na qual ele se encontra. Por isso que para qualquer professor é duro ouvir as palavras alvejantes proferidas pelo político potiguar. Elas causam tanta indignação porque no fundo, por mais que se tente recalcar, todo professor sabe que o desrespeito de ontem, ocorrido na câmera dos vereadores, foi mais um capítulo da série de ofensas pelas quais se passa diariamente e, infelizmente, parece que irá perdurar por bastante tempo.

A realidade salarial de boa parte dos docentes, a estrutura da maioria das escolas públicas, a maneira como os alunos tratam os seus professores, em suma, o tratamento que a sociedade dispensa aos profissionais do ensino comprava uma má situação. Se fossemos medir o grau de civilização de uma sociedade pela maneira como está trata seus professores, certamente o Brasil estaria nas piores posições. Sendo assim, urge lembrar, tanto ao vereador Luiz Almir como a toda a sociedade norte-riograndense, que professor nenhum é besta ou cachorro para ser maltratado e aguentar calado. Nós não iremos latir ou morder. Mas continuar nosso árduo e edificante trabalho de pensar e ensinar a pensar. Uma sociedade com conhecimento crítico e consciência sabe bem qual é o lugar dos professores e de pessoas como Luiz Almir.