Dois adolescentes com uma arma de brinquedo são rendidos e presos a um poste. Amarrados, são agredidos com socos e pontapés por populares e transeuntes. Em seguida, despidos e enlaçados, os jovens são obrigados a correr nus por uma das avenidas mais movimentadas de Natal. Atrás deles, uma pequena multidão eufórica e enraivecida os acompanha e os “açoita” com suas câmaras de celulares, motos, gritos, xingamentos, zombaria e tapas. No final do cortejo de humilhação pública, a tentativa de execução: os dois supostos infratores, impotentes, são obrigados a pular, com as mãos atadas, de uma ponte sobre o rio Potengi.
Os anônimos justiceiros realizaram um julgamento súbito e sumário. Não se defenderam nem renderam os jovens para entregar à polícia. Dispensaram provas fundamentadas e o direito à defesa dos acusados, assim como prescindiram da participação de alguém isento e habilitado para julgar de maneira racional e impessoal. A pequena multidão eufórica e enraivecida condenou sem direito à recurso ou apelação. Promoveram deliberadamente uma humilhação e tortura pública. Em poucos minutos, todas as conquistas jurídicas e civilizatórias de séculos em matéria penal foram atiradas ao lixo.
A cena de barbárie da noite de ontem não foi outra coisa senão um suplício, isto é, uma espécie de reedição dos antigos espetáculos públicos de castigo e tortura que, séculos atrás, os acusados de terem cometido algum crime grave eram submetidos para expiar sua culpa nas aflições da roda, da marcação com o ferrete, do açoite e do desmembramento por cavalos. Mesmo sem maiores solenidades e a sem a presença de autoridades ou de um carrasco formal, tivemos um verdadeiro ensejo de uma pena física e humilhante aplicada contra duas pessoas sem acusação formal. Pior: o linchamento foi realizado diante dos olhos de todos, num local público, de fácil acesso, durante quase uma hora e num percurso de 6 quilômetros sem que nenhum agente do estado intervisse. A omissão do Estado no episódio é sintomática, reflete não apenas sua condescendência com o que ocorreu quanto também sua omissão cotidiana em termos de políticas públicas satisfatórias.
A ação dos justiceiros é um ato bárbaro e um crime grave. Um retrocesso civilizatório e um deboche a todo o Direito e a Justiça. Nos linchamentos não há juiz, advogados e promotores, mas somente, como observou Michel Foucault sobre a justiça popular, “as massas e os seus inimigos”. Engana-se quem julga que o propósito dos linchadores com suas reações indignadas supostamente realizadas em defesa da comunidade seja produzir, ainda que pelo medo e a exemplaridade tirânica, uma sociedade mais segura e pacífica. A motivação é muito mais emocional: descarregar e compartilhar ódios e frustrações contidas e recalcadas. Não se trata simplesmente de uma reação irracional produzida pela omissão do Estado no cumprimento de suas atribuições legais e políticas mas de sentimentos sociais autoritários e violadores, historicamente cultivados e tolerados na sociedade brasileira, que existem de maneira latente na consciência coletiva. O linchamento proporciona, com efeito, um ocasião de comunhão e celebração dessas emoções e sentimentos sociais autoritários, um gozo coletivo para dar vazão, de maneira socialmente autorizada, ao ódio e a agressão desenfreada. Na ilusão de um sentimento de estar restabelecendo uma ordem moral superior, correta, que fora violada, os linchadores colocam para fora tudo o que são nos porões de suas almas.
Em todos os linchamentos, os algozes desejam algo mais do que simplesmente matar ou castigar. Mais importante do que a morte física, é destruir simbolicamente a pessoa através da exibição vexatória e pública de seu corpo violentado e humilhado. A vexação pública e a vergonha são formas de expiação que visam desumanizar os infratores para assim, simbolicamente, expulsá-los da sociedade, ou seja, da própria comunidade humana. A nudez, as cordas, os mutilamentos, os xingamentos como “vermes”, “coisa”, “lixo”, são ritos e recursos para retirar a “humanidade” do condenado. Sua infração é entendida como um ato abominável contra o grupo, por isso o linchamento é um ritual de exclusão e eliminação física e simbólica, que, por meio da dor, da humilhação pública e destruição do outro, visa purificar o grupo de suas “ameaças internas”. A mensagem implícita é: “você não faz parte de nós, você não é um de nós”. No caso presente, trata-se de uma exclusão dessa comunidade imaginada chamada “cidadãos de bem”, “humanos direitos”. A motivação dos linchamentos é, portanto, esse desejo conservador de restabelecer uma ordem purificada contra todo e qualquer “outro” visto como inimigo, tomado como bode expiatório de todas as fraturas, mazelas e fracassos sociais que “nós”, cidadãos de bem pelos erros dos outros nunca os nossos, acreditamos sofrer injustamente.
Travestido de justiça, de indignação popular ou de um desejo de corrigir a sociedade, os linchamentos são práticas que manifestam o que há de pior nos seres humanos; a fúria descontrolada, o ímpeto de vingança, a crueldade sádica, a insensibilidade e indiferença absoluta diante da dor do outro, o prazer pela humilhação alheia. Ou seja, todo esse conjunto de emoções agressivas e instintos perversos sobre os quais se realiza um imenso trabalho social e psíquico de repressão e autocontrole para viabilizar o animal humano em um ser racional e moral e, assim, permitir a própria vida em sociedade de maneira civilizada, é com os linchamentos totalmente liberado e desimpedido. Nos vídeos que circulam pelas redes sociais, vemos uma multidão em que vicejam ímpetos sádicos, uma pulsão de morte que governa e orienta para a crueldade e a destruição.
Que tipo de sociedade pessoas totalmente entregues a esse tipo de paixões e sentimentos perversos podem construir? Não há nada sadio e construtivo nisso. Desse caldo emocional de agressividade somente pode nascer violência e autoritarismo. Deixados a cargo dessas emoções súbitas, sádicas e agressivas, seres humanos nenhum podem coexistir em segurança ou mesmo desenvolver uma noção de comunidade verdadeira.
Os linchamentos não conduzem a nenhuma pacificação ou redução da criminalidade pelo suposto temor que eles provocariam nos “bandidos”. Estes, na verdade, tenderiam a agir com mais violência e letalidade, visto o maior risco e pressão que suas investidas criminosas passariam a ter. Numa sociedade do medo generalizado, o que temos é uma condição de “guerra de todos contra todos”. Sem existir parâmetros e critérios impessoais e neutros de julgamento, já que o que prevalece é a “vontade e as paixões” das pessoas por justiça e vingança, para não ser vítima da ação violenta e do desequilíbrio do outro, nós o atacamos primeiro. No começo, então, as vítimas são pessoas apanhadas em flagrantes, em seguida suspeitos de quem se ouviu dizer que cometera algum crime, até que, em não muito tempo, inocentes confundidos tornam-se vítimas da multidão ensandecida, tal como ocorreu em Guarujá-SP há alguns anos atrás em que uma mulher foi espancada brutalmente até a morte por causa de falsos boatos sobre sequestros de crianças e magia negra.
Tem-se, assim, um estado de medo, ansiedade e suspeita generalizado. O resultado é, portanto, uma espiral crescente de violência a qual se responde sempre com uma violência antecipada e passional. Saudar e celebrar ações e execuções à revelia do direito e das leis em nome da legitimidade e justiça das paixões e indignações coletivas e individuais é promover a barbárie. Nessas condições, todos estão ameaçados o tempo todo, pois a categoria “bandido” estará ela própria submetida a critérios igualmente passionais e pessoais.
É fato que Natal é assolada, há algum tempo, por uma crescente e assustadora escalada da violência e de crimes atrozes, como os assassinatos brutais de estudantes, seguranças, motoristas de ônibus, sequestros em supermercados, arrastões em transportes públicos, fugas quase diárias de presídios e delegacias. Isso cria não somente uma sensação generalizada de insegurança e medo, como, também, sentimentos legítimos de indignação e abandono por parte das autoridades públicas. Contudo, por mais indignada que se encontre a população não há justificativas racionais para atitudes tão perversas como as infligidas contra os adolescentes. Ao seguirem por tal caminho, os ditos “cidadãos ordeiros e de bem” se igualam aos criminosos a que dizem, com tanta convicção moral, se opor e repudiar. Cometem um crime com crueldade sistemática e vingativa. Ao Estado, cabe apurar, identificar e processar os linchadores. Do contrário, a sua omissão e condescendência com esse nefasto episódio de barbárie se converterá em cumplicidade.
Não se trata de responsabilizar unicamente a população. Evidentemente, os recorrentes fracassos das autoridades públicas em matéria de segurança mas não só nela, como também em educação, na inclusão social, na promoção de valores dos Direitos Humanos, são parte essencial do caldo cultural de indignação e agressividade que impulsionam essas reações violentas. De todo modo, o linchamento é uma resposta irracional e irresponsável para problemas que exigem racionalidade e mobilização política capaz e motivada para protestar, cobrar e propor soluções coletivas diante dessas mesmas instituições que tanto tem falhado e nos abandonado ao que de mais estúpido existe nos seres humanos, a violência. E não é com concepções arcaicas e autoritárias de justiça que enfrentaremos de maneira adequada os urgentes problemas da violência e do crime nas cidades.