Até onde me lembro o primeiro contato que tive com os sebos foi aos meus nove anos de idade, na velha, feia, feira da Cidade da Esperança. Chegava cedo, assim que o “Seu Luís” colocava as suas revistinhas em sua banca de madeira; acuado pelo olhar de outro garoto, mais velho que eu, que trabalhava para Seu Luís, e que sempre estava disposto a arrebatar-me da mão uma Hq que lia despreocupadamente, porque eu tinha de pagar.
Adolescente, juntava-me a outros bandos de moleques e partíamos às vezes a pé da Cidade da Esperança até a Cidade Alta, para simplesmente conhecermos outros sebos e nos aventurarmos. (Uma vez fomos convidados a nos “retiramos” de um sebo por sua proprietária, por conta de uma bagunça que fizemos, derrubando uma pilha de livros e discos, como se aquilo fosse algo de todo organizado…)
Entrar em contato com um sebo “era” uma aventura, porque no meio de algo que mais se assemelhava a um monte de lixo, você podia descobrir de repente algumas pérolas. Uso o pretérito imperfeito porque hoje grande parte dos sebos nos está privando do prazer da descoberta. Do cheiro do mofo. Hoje os livros que você procura está ao alcance da mão nas estantes; divididos por seções, gêneros, ordem alfabética. Muitos fazendo uso de computador. Algo inimaginável há um tempo. Mas ainda existem modelos românticos em que os livros ficam espalhados ao chão e o proprietário fica tomando sua cerveja, conversando sobre política com velhos comunistas e não lhe dá nem o ar da graça.
O que logo aprendi, às vezes da pior forma nesse mercado, foi que você nunca ganha nada no comércio com um sebista, ao contrário do que dizem por aí (E não, não me tornei um homem ressentido.). Como as grandes relações de amor, você sempre dá mais do que recebe. No geral, os sebistas lhe pagam menos da metade de seu livro. (apesar da maioria se dizer ser contra o capitalismo) e não têm a estima que você depositou naquelas velhas páginas em todos os anos em sua estante.
Se você for tentar uma troca, não se saberá por que cargas d’água, o livro do proprietário do sebo sempre terá um valor maior do que o seu (Pode ser velho como for, ou de uma literatura de gosto duvidoso) E no final você ainda achará que fez um bom negócio. E mesmo assim, depois de todos esses anos, ainda me mantive fiel a essa relação estranha.
Na avenida dois do Alecrim existe um sebo, um pequeno sebo de nome tão singelo quanto sua aparência, que um dia, andando a esmo pelas ruas, parei diante de uma placa que estava em uma calçada que me chamou a atenção: “Sebo Passarim”.
Mas o correto não seria passarinho? Decidi entrar.
O lugar era estreito, dois vãos, com uma pequena escada que lhe dá acesso logo na entrada. O dono é um sujeito grande. Um senhor de bigode e cabelos grisalhos, com as feições severas de um mujique* e um espírito grego de Zorba.
Como sempre acontece, ao chegar, fiquei olhando seu acervo timidamente, tentando encontrar as minhas “pérolas”, detido nas seções de literatura.
Este senhor chegou para mim com um inabitual, quer um cafezinho? Logicamente, achei aquilo estranho. Daí, só com um tempo, eu passei a perceber que “aquilo” era algo comum naquele sebo. Tão comum como ficaria mais tarde para mim o E aí bicho, vamos fumar uns cigarrinhos?
Os tipos que frequentam este sebo não são as rodas pseudointelectuais que se veem por aí. São dos mais variados e comuns. Alguns alunos (como não poderia deixar de haver), professores (idem) e flanelinhas, donas de casas, curiosos (porque ainda não sabem o que é um sebo) dentre outros.
O seu “Titico” (Esse é o nome do velho mujique) os atende todos sem a menor distinção, com o seu Quer um cafezinho? E algumas vezes, como já pude testemunhar, além da simpatia, também distribui cigarros aos seus colegas de vício (que inclusive já levou até um de seus irmãos, vítima de câncer, confessou-me).
O ganho que tem é pouco, tirando um lucro muito pequeno do lugar, disse-me outro dia. O que mais importa me pareceu, para ele já aposentado, é passar as suas horas ali, conhecendo pessoas, as histórias de suas vidas, fazendo amizade.
Um dia cheguei com alguns livros para lhe vender, porque estava precisando de grana. Eram livros raros, e o preço que eu estava pedindo, era muito pouco (valiam bem mais). Mas eu estava precisando de dinheiro e me pareceu, ainda que doesse desfazer-me daqueles livros, a coisa mais sensata a ser feita. Ele me olhou com seus olhos de mujique, franzindo o cenho gravemente e disse: “Mas porque você quer se desfazer desses livros, bicho?” Eu lhe respondi “Estou precisando de dinheiro.” “Quanto é que você quer por eles?” “Cinquenta reais” Tome – Disse, sacando um maço de cédulas. “Não se desfaça de seus livros! Depois você me dá.”
Como assim? Eu o conhecia ele pouco mais de seis meses. E ele, afinal de contas, era um comerciante. Eu poderia ficar com o dinheiro e simplesmente dar no pé, para nunca mais aparecer. Peguei as notas e tratei de enfiá-las logo no bolso. “Vai ver que ele muda de ideia…”.
E aí, vamos fumar uns cigarrinhos, bicho?
“Não, ele não mudará de ideia. Tem a honra de um mujique”
Ficamos os dois, fumando os cigarros que ele sacou de sua carteira, conversando na entrada do sebo, observando o vai e vem das pessoas nas calçadas do Alecrim.
“Seu Titico, – indaguei-o, porque Passarim?”
“Poeminha do contra”
“Como?”
“Quintana. Mário Quintana”
“Todos esses que estão aí
Atravancando o meu caminho
Eles passarão
Eu passarinho”
– Só que decidi colocar passarim, por que é assim que uma criança chama.
No mesmo instante lembrei-me de uma frase do poeta Manoel de Barros que afirmou que uma criança erra na gramática, mas acerta na poesia.
E eu que nem gostava de Mário Quintana…