Alta madrugada, suspenso em uma varanda, lembro-me de quando era pequeno, habitando o meio do mato, e ouvia com entusiasmo os meus anunciarem a chegada da boca da noite. Tão curioso aquilo. Era o escuro que escorria por cima de tudo. Os cururus saltando das locas de pedra. As corujas piando sobressaltadas e os morcegos dando rasantes por cima da gente. Lembro também que mamãe não deixava eu e Izabel andar pelos terreiros quando anoitecia porque tinha “boca fria”. “Tem não, mãe… tem o claro da lua!” A gente não tinha medo de cobra. Mais impressionava o som sinistro do vento solto na mata.
Dois meninos dentro da boca da noite… Mamãe, aflita, vigiava a gente de dentro do alpendre. A cena é inteira na mente da gente: papai gastava um pedaço da tarde entretido na cocheira preparando e distribuindo ração para as reses magras. Debaixo das telhas vermelhas do alpendre, mamãe e vovó sentadas. Conversando. Mamãe remendava algum pano ou, simplesmente, não fazia nada. Reclamava dos pés inchados e apoiava-os nos tamboretes amarelos. Vovó, cabelos brancos e passo curto, descansava o peso dos noventa e tantos anos nas cadeiras duras enquanto o relógio não marcava seis horas – que era a hora da reza. Mais tarde, quando chegou energia elétrica na fazenda, era a reza das seis horas e a missa das sete, de que eu e Izabel escapávamos discretamente.
Acabadas as pelejas com as vacas, papai juntava-se às mulheres. Mãe e esposa. Era mais um para engrossar o coro: “pra dentro!, não é mais hora de menino tá fora de casa.” E ficava ali comentando uma coisa e outra. Eu e minha irmã catando coisas nos terreiros ou, nos tempos de seca, entretidos com algum burrego enjeitado que virava cria da casa. A tarde era, talvez, a melhor parte do dia. E a gente nem se dava conta. As ovelhas presas no chiqueiro, uns garrotes procurando dormida por baixo das algarobas, as galinhas fazendo estardalhaço no poleiro. Lá para os lados da serra, os tetéus gritando em grande desespero.
As tardes coroavam nossos dias. Antes de a gente vir para Natal era esse mesmo ritual cotidianamente. Depois que a gente veio, as férias eram sempre o momento mais esperado do ano, com direito, inclusive, a dia riscado em folhinha de calendário. Nas tardes das férias, repetia-se o que era de costume. A mesmo reunião, as mesmas conversas, os mesmos animais. A boca da noite aconchegando cristãos e pagãos. Mais divertido ainda era quando toda a família se distribuía pelo alpendre. Falando assim parece muita gente, mas não. Éramos em oito. Acrescentavam-se duas tias e uma prima.
Depois veio a morte de vovó e a grande tristeza. Dona Senhorinha não acompanhava mais os serões no alpendre nem abria o seu oratório, pontualmente, às seis da tarde. É curioso, mas a boca da noite ficou maior sem a presença de vovó. Parece que o escuro cresce na ausência do ente querido. Nossa gente, então, reduziu-se a sete pessoas distribuídas pelos tamboretes e pelo peitoril da casa.
Hoje, mais crescido, com responsabilidades outras que o cotidiano vai impondo à gente, as férias são menores. As saudades se lançam contra a gente e surgem textos como este. Da distância, recomponho as tardes na São Luiz. A boca da noite em Natal não tem semelhança alguma com a boca da noite debaixo do alpendre, espalhada pelos terreiros, costurada nos galhos da Caatinga de minha infância. Nosso começo de noite era mítico, orquestrado por todos os sons próprios ao sertão e pelo aconchego que é chamado de mãe e cuidado de avó. As panelas para o jantar borbulhando na cozinha, as tias contando histórias, os cachorros entrançando as caldas entre nossas pernas. Às vezes, uma visita também se somava ao grupo e bebia com a gente uma xícara de café ali mesmo no alpendre ou na cozinha, ao redor da grande mesa – a cozinha também é outra parte imensa na minha infância, que merece atenção especial em outro texto.
Engraçado como as madrugadas evocam vidas dentro da gente.