Sou um consumidor ávido de café. Há quem diga que eu seja um viciado. Não sei nem mesmo se existe alguma expressão em nosso vocabulário, ou algum neologismo para definir os viciados em café, tal como, “chocólatra” (Que, particularmente, acho abominável.)
Tomem-me apenas como um viciado em café, caro leitor, sem essa afetação moderna de querer rotular tudo a que a vista alcança. Sou apenas um apreciador de nossos grãos e de seus mais de duzentos tipos de impurezas (Os nossos melhores grãos, outro dia desses descobri, são exportados com no máximo cinco por cento de impurezas para a Europa).
Ultimamente tenho fumado uma carteira de cigarros a cada semana. Logo, também serei um viciado em cigarros. Porque “Um cigarro sempre acompanha um cafezinho”. Gosto de pensar no café como os árabes do século IX, que o descobrindo através da Etiópia, deram-lhe o nome de Quahwa (vinho)
Os viciados em café (ainda) podem tomar o seu café desavergonhadamente a céu aberto, sem o receio de se sentirem perseguidos por olhares tortos, ou de placas que lhes indiquem o seu “lugar de viciado.” Pelo contrário, existem estabelecimentos charmosos que levam o simples e singelo nome de café, onde os viciados reúnem-se em grupos, batem um papo, ou podem ler o seu jornal. (O café São Luiz, no centro, foge a essa elegance. A lembrança que guardo mais antiga daquela confraria, quando meu pai me levava lá ainda menino, é de algo muito viril. Uma confusão de berros, gargalhadas e empurrões; as meninas do balcão preparando os cafés, todas mulatas, com “cara de poucos amigos”. Os rostos afogueados, resplandecentes pelo calor, pingando suor, e meu velho, sempre soltando uma piadinha…)
Hoje existe uma infinidade de composições para o café. Várias formas de vendê-lo, ou de fazer publicidade. Mas nada parecido, com que vi um dia…
Existe uma cidade, no limite do Rio Grande do Norte com o Estado do Ceará, um lugar árido, esquecido por Deus, onde dezenas de caminhoneiros passam a madrugada num posto fiscal da polícia federal para a conferência de suas cargas. Eu e minha companheira embarcamos em uma aventura a lá On the road, e tínhamos pego um carona para chegarmos à cidade de Fortaleza, na casa de sua irmã, com um sujeito muito legal chamado “Dias.”(Dias, seja lá aonde você estiver, se você estiver lendo este artigo, obrigado cara!)
Dias era tão educado, sensível e inteligente, quanto seu nome era simples. (O que conheci de seu nome.) Em nossa aventura, Dias levava também sua irmã conosco. Tinha feito um promessa para si mesmo de reunir toda a família, que andava meio espalhada pelo Brasil, depois que o pai morreu. O pai estava em um segundo casamento, quando faleceu. A última vez que Dias tinha visto a irmã ela tinha quatro anos. Agora era uma adolescente. Contava isso com um brilho olhos.
Quando chegamos ao tal posto já era tarde da noite, e a boleia não poderia comportar quatro pessoas e mais suas bagagens. Dias, em toda a sua gentileza, queria que eu e minha garota dormíssemos acomodados na boleia. Naturalmente, relutei. Disse que ele é quem precisava dormir, porque nos conduzia a todos. Ele apenas deu de ombros, e com um sorriso, assentiu-nos com um “tudo bem!”
A boca amargava com a poeira acumulada da estrada. O suor colava a roupa suja ao corpo. A viagem era fatigante. A noite longa. Nós não estávamos acostumados. Tomamos umas cervejas. Dias sabia disso e chamou-nos a um canto escuro.
“Tomem isso daqui. Mas não digam a ninguém. Vocês não sentirão sono. Quando o dia amanhecer vocês devem beber um copo de leite. Mas, ô, não digam a ninguém que eu dei isso a vocês …”
Isso consistia em duas cápsulas, que dividimos, uma para mim, outra para a minha garota. Abrimos as cápsulas e engolimos um pó. Os caminhoneiros chamam-no de “arrebite.” Tomam aos montes, para não dormirem e conseguirem entregar as cargas, principalmente perecíveis, no prazo. Alguns dos caminheiros que conheci nessa noite, chegaram a dizer que já haviam tomado “treze” cápsulas em uma noite e vomitado sangue.
Dias nos levou até a uma barraca, que, ao longe pude observar alguns homens em volta. Deduzi serem caminhoneiros. Havia também um grupo de garotas. Dias iria apresentar-nos a uma amiga sua. Dona da barraca. Iria nos deixar aos cuidados dela, enquanto amanhecesse o dia.
A barraca era bem rústica, como (ainda?) se vê nas feiras livres, feita de lascas de madeira e pregos expostos, com uma lâmpada suspensa sob uma tenda. Disposta na barraca, sob um plástico, havia bolos, biscoitos, tapiocas e várias garrafas de “café.” Pelo óbvio. Mas o que eu não sabia, (ainda) é que a dona da barraca, assim como as meninas que estavam rodeando-a eram todas “prostitutas.” Na barraca, além do café se tinha sexo. Ou os dois, ao gosto do cliente. Uma infinidade de composição.
Os tipos das garotas eram o mais “assombroso” possível. Tinham qualquer coisa de mítico. Algumas não tinham os dentes da frente. Os cabelos, desgrenhados, saltavam-lhes tais serpentes; de onde desciam caspas a olhos vistos, um cheiro forte de um perfume doce e de algo que não pude identificar. Os homens, longe de suas famílias, abrutalhados pela vida na estrada, pelas noites insones de arrebites, pelo temor de serem assaltados ou mesmo mortos por ladrões, recebiam-nas, com ardor, em seus braços. Precipitados pelo frio e pela solidão.
A dona da barraca foi muito gentil. Não nos deixou faltar nada até à manhã. Assim como todas as meninas. A noite seguiu tranquila, apesar de que, de quando em quando, havia uma tensão no posto da polícia federal, na iminência de um assalto por bandidos fortemente armados. Era algo comum na região. O posto fora alvo várias vezes de bandidos.
Entre uma conversa e outra, percebemos no céu os primeiros raios da manhã insurgente nos olhos apertados. Os caminhoneiros, pouco a pouco, como um exército que precisa levantar acampamento logo cedo, saiam de suas redes ou surgiam das boleias. Sobrevivemos.
Nesse momento paguei um cafezinho. O arrebite não fez muito efeito sobre mim. De forma maliciosa, uma das garotas que estava próxima, perguntou-me se eu não ia querer comer alguma coisa pra acompanhar o café. “Oh, não. Não costumo comer nada cedo pela manhã”. Disse-lhe. “Sou apenas um viciado em café”.