Aqueles que são contra as políticas de cotas mobilizam, com frequência, o mesmo argumento em defesa do princípio meritocrático, como critério adequado de avaliação do desempenho dos indivíduos. Enxergam na meritocracia um “princípio de não discriminação” mais “justo” na avaliação e seleção do desempenho diferencial entre indivíduos. E seria verdade se a meritocracia se realizasse de fato num contexto social de ponto de partida igual entre os indivíduos, algo que não encontra sustentação empírica alguma numa das sociedades mais desiguais do mundo, como é o caso brasileiro. Tampouco nos EUA de hoje, modelo de sociedade meritocrática para muitos liberais, o argumento do mérito encontra o consenso discursivo que se acreditava ter no passado. Não é por acaso que Michael Sandel, filosofo estadunidense e teórico da justiça, sugere a existência de uma confusão em torno da dissociação entre justiça e mérito moral nos debates sobre cotas para minorias nas universidades.
Ainda sobre isso, convém resgatar também a concepção de mérito moral, segundo John Rawls, filosofo político e teórico contemporâneo da justiça. Rawls alegava que o mérito moral não pode ser mobilizado de modo independente pelos indivíduos. Ao contrário, o próprio sentido de mérito depende da definição a priori da missão de uma instituição social. Considerando essa linha de raciocínio, uma instituição pública que tem como elemento constitutivo do conteúdo de sua missão a defesa e afirmação do pluralismo cultural na administração não pode se apoiar exclusivamente numa compreensão de mérito cega às possíveis distorções em testes padronizados. Distorções estas, por efeito de antecedentes familiares, sociais, culturais e econômicos. Além disso, dificilmente vamos encontrar na missão de uma universidade pública ou de algum outro órgão estatal a defesa de sua gestão administrativa por uma “elite meritocrática” que não encontra lastro de legitimidade em todos os grupos da sociedade.
No entanto, ao invés de abordar a fragilidade do argumento meritocrático apelando para os condicionantes desfavoráveis de grupos minoritários, caberia também ressaltar a própria “mitologia” da sociodicéia de ascensão e sucesso biográfico, inscrita simbolicamente na retórica meritocrática. Dito de outro modo, a ideologia do mérito articula uma bela narrativa biográfica de esforço individual, onde se acredita que o indivíduo pavimentou seu trajeto social para o sucesso, de modo independente e autônomo. Com efeito, o percurso biográfico do indivíduo é de uma história solitária, sem experiências de solidariedade, de ajuda em momentos significativos de sua vida pessoal.
Como ilustração, lembro-me bem de um jovem estudante oriundo de família de baixa renda, beneficiário de uma bolsa de estudo num colégio particular e que, em seguida, ganhou outra bolsa num cursinho privado de pré-vestibular. O jovem em questão costumava articular essas experiências passadas como ganhos resultantes de seu desempenho nos estudos e não como “bens de solidariedade” social. Ironicamente, seus professores articulavam uma outra justificativa (embora não ignorasse o mérito) para o benefício da bolsa, precisamente, do “estimulo” a um jovem de “família humilde”, que na AUSÊNCIA da bolsa não conseguiria chegar à universidade. O curioso e relevante nesse caso (real) particular é a força da meritocracia, tanto na narrativa do jovem estudante quanto na narrativa compartilhada pelos professores. Resumidamente, o jovem não reconhecia a rede de solidariedade da qual contou, e os professores, por sua vez, reconheceram (parcialmente) a importância da solidariedade, porém secundária em relação ao desempenho individual.
Em outro caso interessante, um jovem de classe média alta que quase foi reprovado no ano letivo escolar, encontrou e contou com a solidariedade de um grupo de professores. Esse grupo, em favor do estudante, destacavam a ausência dos seus pais em casa, o que tipificava, segundo defendiam, um ambiente familiar conturbado e de afetos frágeis. Assim como o primeiro jovem de baixa renda, o segundo jovem, passado o ocorrido, ao ingressar no curso de direito, rapidamente aderiu ao discurso da meritocracia, esquecendo das redes de solidariedade que o ajudaram.
O que eu quero demonstrar com os dois casos apresentados é o quão difícil é definir um quadro claro do que se compreende por trajeto meritocrático. Principalmente em segmentos e estratos sociais onde experiências de ajuda não aparecem nas narrativas de justificação do presente. De fato, ainda que eu possa afirmar que na minha posição acadêmica e profissional atual exista uma história de engajamento e esforço pessoal, não posso atribuir exclusivamente o meu “sucesso” a isso. Nem muito menos, podem ser negligenciadas as redes pessoais e familiares de solidariedade que me ajudaram ao longo do meu percurso biográfico. Porém, essa compreensão das redes de solidariedade como parte constitutiva de minha biografia não é algo evidente, principalmente num contexto cultural de afirmação e reafirmação diária da autonomia e independência individual. Numa configuração institucional onde a autonomia é um “super bem” de civilização, não há muito espaço para o reconhecimento da dependência do outro. Até as demonstrações públicas da importância da família no trajeto bem sucedido de seus filhos acaba soando protocolar ou efêmero.
Nesse sentido, a má fé da retórica meritocrática não está apenas em estigmatizar os beneficiários de cotas como se fossem indivíduos “dependentes” da ajuda dos outros. Mas também em articular uma auto-imagem ilusória da ascensão e do sucesso social, como realizações independentes de redes sociais de ajuda mútua. Porém, não se forja um indivíduo autônomo do dia para a noite. Isso implica uma história de experiências acumuladas em redes de interdependência, de aprendizados e de solidariedade. E mais, a autonomia e o mérito são sempre situados socialmente: o autônomo na esfera do trabalho pode ser também completamente dependente na esfera doméstica. O competente na teoria do direito administrativo pode se mostrar incompetente na prática administrativa.
Além disso, claro, as pessoas precisam também acreditar que vale a pena investir naquele indivíduo que se esforça.
Há um ato de fé no “crédito” (ajuda, incentivos) que distribuímos às pessoas. E infelizmente os cotistas não parecem contar ainda com a fé generalizada da sociedade brasileira. Aqui encontramos um outro traço da má-fé da retórica meritocrática. Passada uma década, não há elementos substantivos que demonstram o fracasso da política de cotas no país. E na inexistência de argumentos empíricos, resta apenas resgatar e requentar a narrativa da meritocracia. Uma narrativa descontextualizada e desenraizada socialmente, ou seja, um mito ou sociodicéia de justificação da dominação e da exclusão.