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“Marcha para Satanás” e a reciprocidade democrática

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12471488_1247526618595943_7006933883273222804_oDomingo, dia 17/01, ocorrerá em várias cidades brasileiras, a “Marcha para Satanás”. Natal será uma delas. Não se trata, conforme os organizadores, de um evento religioso, de cunho satanista, de adoração ao “tinhoso”, nem de um evento anti-religião, que visa promover intolerância e provocar adeptos de alguma confissão. Trata-se, sim, de um protesto e crítica contra a interferência religiosa no Estado e as tentativas de algumas lideranças religiosas de pautar debates públicos e laicos sob dogmas religiosos, o que, como temos visto nos últimos tempos, redunda em verdadeiros empreendimentos políticos de restrição de direitos, especialmente das minorias.

Afinado com o espírito “zoeiro” do tempo – alguns preferem chamar de pós moderno -, os organizadores apostam na ironia e na troça como estratégia de visibilidade e de arregimentação para lidar com uma questão séria e politicamente cada vez mais relevante e central na esfera pública brasileira. Sem dúvida, esta é uma linguagem que produz adesão, resta saber se ela é exitosa quanto a produzir uma adesão forte, reflexiva em termos de valores seculares e liberais, ou se se esgota no gregarismo momentâneo inclinado ao gozo das emoções e sensações do “estar junto” por alguns instantes nas ruas e nas redes sociais.

Evidente que críticas serão, e estão sendo feitas, sobretudo no que diz respeito ao nome escolhido e às possíveis consequências de produzir mais polarização e ensurdecimento mútuo num assunto que, por sua natureza, é bastante propício para extremismos, em que os dois lados mais engajados (teístas e ateus) afirmam está, necessariamente, em posse da verdade. Há quem acuse um certo juvenilismo, pouco construtivo quanto ao que o protesto pretende chamar atenção, dado o caráter lúdico com o qual se revestiu. Em outras palavras, não passaria de uma típica manifestação desses tempos irônicos e líquidos, marcado pelas redes sociais, com pouco ou nenhum efeito prático. Outros condenam o nome, acusam como uma clara intenção escarnecedora do cristianismo, assim como os lugares, em Natal, escolhidos para a passeata, isto é, duas igrejas evangélicas.

A despeito do tom provocador, a escolha do nome não é descabida se pensarmos “Satanás” como Lúcifer, o anjo decaído que se rebelou contra a ordem celestial. Na mitologia, Lúcifer é, também, símbolo da luz e da inteligência. Não há ofensa aqui porque os significados de Lúcifer, “Satanás”, como queiram, não são de monopólio das religiões cristãs. Aliás, se tomarmos as artes, a figura de Lúcifer é uma fonte tão rica para cultura ocidental quanto Deus, tendo inspirado quadros, peças, romances, músicas, etc.. No contexto da manifestação, penso, “Satanás” é mobilizado como o “outro”, o que é excluído, a diferença, a alteridade que é estigmatizada e condenada a um existência rebaixada, às margens e sob as trevas do mundo, subterrânea na ordem social e política. “Marcha para Satanás”, talvez, signifique que este mundo em que vivemos não é governado por deidade alguma, que se arvora o poder de decidir por sua vontade soberana e única quem adentra ou não nos “Reinos dos céus”, nesse caso, tomado metaforicamente, pela ideia, equivalente na atualidade, de expulsão dos  “reinos dos direitos e da cidadania”.

De todo modo e apesar dos apesares, o evento tem provocado discussões num clima relativamente amistoso. Será uma ocasião política e lúdica para externar críticas e propiciar aprendizados sobre o significado e importância do Estado Laico. Que o protesto siga essa finalidade e seja utilizado de maneira não sectária nem gratuitamente agressiva. Se a ironia como política, como estética política, é ou não a melhor estratégia, e isso é uma outra questão, que organizadores e participantes reflitam posteriormente. Sério ou não o evento, a discussão acerca da laicidade e as consequências do fundamentalismo religioso na sociedade brasileira é urgente e imprescindível. A vida social e política de uma sociedade não podem ser definidas, em sua totalidade, por uma doutrina particular, ainda que ela seja a doutrina da maior parte das pessoas em nossa sociedade. Isso não dá elas o direito de definir quem pode casar com quem, o que é uma família, sob que condições pode-se ter acesso a procedimentos abortivos, o que se deve e não se deve ensinar na escola, e assim por diante. Sua doutrina religiosa serve apenas para definir suas vidas particulares, no limite das leis, e não de governar todas as demais.

Portanto, o fato é que, no Brasil dos últimos anos, as tensões sociais ocasionadas pelo conflito entre os ideais de boa vida baseados em visões de mundo religiosas e seculares alcançaram um elevado grau de publicização e de desentendimento. O que, inevitavelmente, num país que é, ao mesmo tempo, cada vez mais religioso e secular, coloca a questão de como é possível a convivência pacífica e razoável entre cidadãos de fé e cidadãos seculares. O debate tem de ser concebido, a meu ver, nesse marco, na criação de formas civilizadas de dissenso e convivência entre pensamentos contrários. Se engana quem acha que esta é uma questão sobre a verdade. A verdade aqui somente atrapalha. Ela é antes, com efeito, uma questão política e ética, de definir formas de tolerância mútua e reconhecer o direito de cada comunidade de valores de tomar parte na esfera pública, com razoabilidade e compromisso com os princípios constitucionais vigentes, seja para defender os seus valores seja para criticar outras convicções e crenças.

Se, por um lado, os grupos seculares na defesa de seus valores devem respeitar à liberdade e identidade religiosa, por outro, os grupos religiosos na defesa de seus valores e dogmas de fé devem respeitar à liberdade de expressão, de pensamento e a laicidade do Estado. No final das contas, a despeito de suas discordâncias, ambos os grupos tem de endossar os princípios constitucionais e políticos que regem nosso Estado de Direito e democracia. Esta é a linguagem para qual temos de traduzir nossos valores privados quando se trata de interferir politicamente nos assuntos públicos da sociedade e da política. E, nesse aspecto, alguns grupos religiosos, sobretudo lideranças como Malafaia, Eduardo Cunha e Marcos Feliciano tem atropelado esse imperativo, e apresentado enorme dificuldade de aceitar que seus dogmas e preceitos confessionais não estão acima da constituição e das leis. Por outro lado, parte de grupos seculares e defensores da laicidade tomam as pessoas religiosas como sendo necessariamente incapazes de serem racionais e de terem nas suas ações e posicionamentos políticos uma ética da cidadania, isto é, de saber separar o que é da ordem da suas convicções religiosas do que é da ordem dos direitos e deveres da sociedade em que vive como cidadão e membro. Eis o obstáculo de todo o sectarismo religioso ou não em uma sociedade multicultural e em um Estado de bases seculares e laicas. O desafio real é transformar comunidades de valores refratárias ou ignorantes quanto aos princípios dos direitos fundamentais em comunidades que não só os respeitem mas o exercitem em suas práticas e relações cotidianas, especialmente em relação aos grupos que pensam diferentemente.

Dito de outro modo, só há tolerância mútua e um dissenso racional se houver uma reciprocidade democrática na alteridade, isto é, numa sociedade democrática marcada pelo pluralismo de convicções, é preciso que indivíduos e instituições cultivem o reconhecimento de que os cidadãos, religiosos e não religiosos, são livres e iguais para usufruir da esfera pública e exercitar sua razão, desde que o façam em conformidade com os direitos fundamentais, quer dizer, não os infringindo com intolerância, discriminação e censura. Ser recíproco democraticamente é uma difícil tarefa, uma verdade dura de aceitar e mais ainda de praticar, no entanto, irremediavelmente necessária para um convívio civilizado.