Por William Eloi, escritor
Não me lembro de quando era aquele jornal. De qual era o dia. Lembro apenas que tinha uma consulta marcada no dia em que ali me encontrava, e que deveria estar nesta clínica às onze horas da manhã de uma segunda-feira cinzenta. Sentado ao meu lado havia um homem que se detinha na parte esportiva de um jornal. Lia aos pedaços. Amarrotando as folhas que deixava ao lado.
Esses jornais e revistas, que geralmente estão em algum cômodo na sala de espera das clínicas médicas particulares são para passar o tempo, enquanto esperamos atendimento. Na maioria das vezes um amontoado de revistas ou jornais velhos. São démodé. Por isso nunca me dou ao luxo de verificar datas ou dias que estão descritas em seus cabeçalhos. Mesmo assim meus olhos não puderam deixar de se deter no que sobrava deste jornal, do que não despertava interesse a esse homem nas páginas que eram descartadas ao meu lado. E para a minha surpresa havia uma matéria sobre o novo disco do David Bowie. Black Star.
Bowie mais uma vez, como é natural ao espírito que lhe deu fama e fortuna, trouxe a seu público uma obra experimental, depois do ótimo The Next day (Aqui, ouso dizer, sua melhor experiência desde Scary monsters and the super crepes) um disco influenciado no jazz e rap de Kendrick Lamar e que, segundo Tony Visconti, produtor e amigo de longa data, havia “relegado as guitarras”. Nada tão inusitado em se falando do gênio Bowie, que ainda no auge da fama, na era Ziggy Stardust, decide “matar o personagem”, adotando a soul music, e logo após a música eletrônica, com influências de grupos como Kraftwerk e Neu! .
O nascimento do mito “Bowie” significou também o fim de uma era. O fim do sonho. Depois da de Altamont e de Charles Manson, ele era o “messias leproso”, que veio ao mundo anunciar o eminente desastre. E toda uma geração “se agarrou” aquele ser andrógino. Viam nele seu salvador. Um ícone reclamado por várias tribos. Dos punks aos clubers. Das catacumbas góticas ao glamoroso mundo da moda. Amigo de personalidades como Frank Sinatra e Iggy Pop.
Poucas vezes na história do entretenimento um artista teve a ousadia e uma visão do alcance de si mesmo e de sua obra. O timing exato para a autopromoção. Quem não reconhece o olho em que quase perdeu em uma briga; que soube tão bem transformar em um charme sombrio e enigmático? Ou o nome que adotou; tirado de uma faca?
Algo até comum para os dias de hoje, não podemos fazer ideia do quanto à afirmação de uma bissexualidade não poderia soar chocante em meados século passado, ainda por cima vinda de um homem, e que esse homem fosse casado e que tivesse filho.
Como um Jean Cocteau de seu tempo, seu campo não se restringiu ao gênero que lhe revelou ao mundo, mas ao teatro (Com a ótima interpretação de Joseph Merreck na Broadway, na peça o homem elefante), cinema (Como Pôncio Pilatos na última tentação de Cristo). Dedicava-se também a pintura. Ciceroneou novos (Pixies, Placebo, Arcade Fire…) e velhos ídolos(Lou Reed, Iggy Pop…)
Talvez muito da alma irrequieta de Bowie se devesse a influência que sofreu do irmão esquizofrênico, Terry Burns, que ainda na adolescência apresentou-o ao universo beat e outros artistas subversivos. O personagem “Aladdin sane” é sua homenagem ao irmão, que se matou, jogando o corpo em direção a um trem, depois de uma vida de idas e vindas a clínicas psiquiátricas. O próprio Bowie achava que se tornaria “louco” um dia, pelo histórico familiar.
Depois de várias tentativas frustradas para alcançar a fama, envolvido em um laboratório de artes, em vários projetos musicais, e em grupos de mímica, tornara-se, enfim, mito nos anos setenta. E como todo o mito, pagou e viveu seus excessos, como quando vivia apenas da famosa “dieta branca” (nada mais do que “leite e cocaína”) e de seus efeitos (suas paranoias), como quando armazenava urina na geladeira conforme lhe ensinava os livros de bruxaria, ou desenhava um pentagrama de sal, achando que estivesse sendo perseguido por feiticeiras ou espíritos ruins.
Perguntado uma vez por um jornalista sobre sua vida nos anos setenta, apenas respondeu, no estilo que lhe era peculiar “Bem, acho que me diverti bastante?”. Ainda se levássemos em conta apenas a vida sexual movimentada que tivera; somos levados a crer que sim. Orgias infinitas, noitadas com travestis na Alemanha, o flerte com a viúva de Chaplin, e um suposto flagra com Mick Jagger feito por sua esposa à época, Angie Bowie (assim como ele, assumidamente bissexual).
O alcance de Bowie era amplo. Seu interesse variado. É difícil mensurar quais foram suas influências e o que lhe influenciou. Bowie era uma antena da raça. Como um exemplo disso, em 2005 sua assessoria entrou em contato com a família de Tim Maia, porque havia interesse seu em gravar o material da fase “Racional”. Porém, nada foi concretizado.
Hoje, passados alguns dias de sua morte, sabe-se que David enfrentava um câncer no fígado há 18 meses, bem como tivera seis infarto. O clima de “Black Star” é permeado pelo tema da morte, por letras soturnas. Talvez sejam as letras mais confessionais de toda a sua carreira (É de arrepiar o clip da faixa “Lázarus”, gravado quatro dias antes de falecer). Como a grande estrela que foi não é de se estranhar que tenha reservando o último ato para si, despindo-se dos personagens icônicos que sempre o acompanharam, para anunciar-nos (novamente): o show acabou.