Alipio Sousa Filho
– Cientista Social, professor da UFRN
No Rio Grande do Norte, 2016 inicia com uma fuga de presos de presídio da capital, desta vez considerada a “maior fuga da história” em número de fugitivos: fala-se de 39. As autoridades e gestores públicos logo tratam de falar de possíveis “causas” para a ocorrência do fato, e de outras fugas anteriores recentes: falam de “erros” contínuos do modelo de segurança dos presídios, “superlotação das prisões”, “problemas históricos”, “causas estruturais” etc. Nas entrevistas à imprensa, dividem-se entre diferentes opiniões e constatações, tais como “falta de uma política governamental para o setor”, “descaso com o problema crônico dos presídios do estado”, “dificuldades de execução de políticas públicas”, “problemas orçamentários’ etc.
Autoridades e imprensa também cogitam a possibilidade de fugas serem ordenadas e realizadas pelos chamados “grupos do crime organizado”, para recuperação de seus integrantes. Uma hipótese sempre admissível.
Não deixa de ser verdadeiro que tudo isso constitui uma parte do problema, se considerarmos que a realidade dos presídios do RN (mas não apenas deste estado do país!) é questão que deva ser designada como um sério problema social. Porém, há algo mais que deve ser dito: nossos prisioneiros fogem das prisões porque, nelas, são também maltratados, violentados, desrespeitados em seus direitos, dignidade e humanidade. A fuga está sempre como alternativa no horizonte do desejo de liberdade e de esperança de ver recuperada a dignidade perdida.
Em pesquisa que conduzo atualmente, como parte de minhas atividades como professor e pesquisador da UFRN, com um grupo de estudantes do PET/Programa de Educação Tutorial de Ciências Sociais, programa do MEC, tem sido possível conhecer uma parte da realidade de alguns dos presídios da capital e o que neles se passa no tocante a situações vividas por homens e mulheres que neles estão. Os relatos de muitos informam sobre os constantes maus-tratos a que são submetidos, incluindo aqueles que resultam do sadismo de dirigentes de presídios e agentes carcerários que inventam “castigos” arbitrários e violentos, absolutamente sem amparo na lei (seja LEP ou leis gerais de proteção dos direitos humanos), e aplicados segundo o puro capricho e vontades pessoais: deixá-los sem refeições do dia, obrigá-los a ficar horas ou dias na “chapa” (ou “solitária”, cela sem luz, ventilação, sem outros prisioneiros), impedi-los de estar juntos em pequenas atividades (orações, jogos), suprimir banhos de sol, destruir pertences pessoais, ofertar comida estragada, retardar cuidados médicos, entre outros exemplos, por quaisquer atos, arbitrária e seletivamente definidos como “desobediência”, “infração”, “indisciplina” etc. Tudo conforme o (mau)humor do seu aplicador, aplicadora.
Aqui fora, a maior parte dos que compõem a sociedade (ao menos até aqui, lamentavelmente) acredita que o que se faz com os prisioneiros e prisioneiras nos cárceres não é nada que eles/elas não mereçam. Na conversação cotidiana, é comum ouvirmos homens e mulheres dizerem que aqueles que estão cumprindo penas de prisão merecem ser castigados pelo que fizeram. A ideologia do castigo exemplar domina grande fração da sociedade brasileira: quanto mais cruel, quanto mais viole a dignidade humana, mais exemplar. É como o senso comum das opiniões concebe a aplicação de penas, mesmo aquelas conforme a lei. É por essa razão que práticas como essas que os prisioneiros denunciam encontram sua legitimação social e permanecem sendo reproduzidas com a cumplicidade da sociedade e do próprio Estado, através de seus dirigentes, autoridades e funcionários, quando deveria ser, pelo Estado, coibidas, impedidas.
Na violência das prisões, senso comum, ideologia do castigo exemplar e Estado se juntam de uma maneira que merece o repúdio de todos aqueles que almejam uma sociedade que trate a todos os seus indivíduos reconhecendo a humanidade de todos. Mesmo quando são aqueles que caem em desgraça por seus próprios atos de delinquência, violência contra outros indivíduos, graves violações de direitos, deveres e leis.
No Brasil, todavia, vem sendo reproduzida a ideia ideológica que defender a dignidade de presos e presas é uma “bandeira” apenas dos grupos de direitos humanos (estes demonizados como defensores de “bandidos” e “contrários às polícias”; o que é falso). Segundo ainda essa ideológica ideia, essa defesa viria apenas ao encontro dos interesses daqueles que, “sem possibilidade de recuperação”, o que, de fato, desejam “é continuar no crime”. Uma tal visão parte do falso pressuposto que há indivíduos que já nascem com propensões ao crime e que aquilo que necessitam é a sua reclusão em presídios. Sem chances de “ressocialização”, como se falava outrora, merecem apodrecer nas prisões, ser condenados à pena de morte ou ser executados por grupos de extermínio.
Não é por outra razão que bom número de pessoas, ignorando princípios e ritos da lei, acusam juízes, ministério público, advogados e outros promotores da aplicação da lei de agirem “a favor dos criminosos”. Ao desconhecerem formulações e deliberações estatuídas na lei, que não ignoram a humanidade de condenados, suspeitos, investigados, muitos assombram-se com as decisões de juízes que consideram e praticam o reconhecimento (óbvio e previsto em lei!) de direitos de pessoas em processos de julgamento ou presas. Daí o bordão brasileiro ignorante: “a polícia prende, a justiça solta”. Se deixássemos a uma certa parcela da sociedade a tarefa de tomar decisões em matéria penal, voltaríamos a tempos bárbaros.
Mas algo que é forte senso comum ideológico tornou-se a própria orientação legal dos Estados contemporâneos em nossos diversos países. A ideia de delinquentes irrecuperáveis, para os quais somente restaria a reclusão pura e simples, constitui, hoje, o que o sociólogo francês Loic Wacquant chamou de ‘nova razão penal”, hegemônica e legitimada socialmente. No novo modelo penal, prender e deixar ficar na prisão, e nada mais!, sem políticas e programas de trabalho, sociabilidade, reinserção social etc., é a regra.
Wacquant falou dos cárceres nos Estados Unidos e Europa como “prisões da miséria”, por encarcerarem predominante os mais pobres. Ele acertou no diagnóstico, que serve como descrição da realidade de muitos outros países no mundo. Mas, para o caso brasileiro, o RN como parte disso, podemos falar de miséria de prisões! Pois, acrescente-se à reclusão pela reclusão, o ambiente físico e social dos nossos presídios como espaços de uma total miséria de condições, cuidados, elas são verdadeiros infernos humanos. Lugares de desrespeito à Lei de Execução Penal (a LEP), desrespeito a direitos humanos, desrespeito à dignidade de prisioneiros e prisioneiras. Lugares de adoecimento físico e emocional. Lugares de abandono e abandonados!
Sou pelo fim das prisões. Não tardará, penso que revogaremos as prisões de nossas sociedades como espaços “necessários”, como fizemos com os manicômios. Ainda que alguns insistam em defendê-los. Mas, enquanto se conservam, ou humanizamos os cárceres, ou tratamos nossos prisioneiros e prisioneiras com a dignidade a que eles/elas têm direito ou homens e mulheres condenados a penas de prisão continuarão construindo seus túneis de fuga… Uma razão deleuziana…
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Foto principal: Anderson Barbosa