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A cultura do tapetão

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Por Renato K. Silva (Escritor e doutorando em Ciências Sociais (UFRN).

palácio guanabaraNa noite de 10 de maio de 1938, havia festa na antiga sede do Senado, no Rio de Janeiro, onde o na época Ministro da Justiça Francisco Campos comemorava com seus correligionários e figurões locais, o aniversário de seis meses da Constituição Federal que implementou o Estado Novo – um golpe político que inaugurou a Terceira República brasileira a partir de uma forte centralização do poder nas mãos do Executivo e que duraria até 1945.

Na mesma noite, do outro lado da cidade, o presidente Getúlio Vargas repousava no Palácio Guanabara. O presidente utilizava o Palácio do Catete como gabinete de trabalho durante o dia e o Guanabara como residência, ou seja, o presidente dormia no Guanabara. Enquanto a noite avançava, Vargas e Alzira, sua filha, não imaginavam o que iria acontecer: um grupo de insurgentes ligados à Ação Integralista Brasileira (AIB) preparava uma invasão ao Palácio da Guanabara com o intuito de assassinar Vargas.

O grupo toma o Guanabara de assalto e investe contra a edificação aos tiros. Eles cortam a energia elétrica mas erram ao não cortar também a linha telefônica. Com isso, Alzira consegue entrar em contato com algumas autoridades policiais da cidade que vêm em socorro ao chamado, sobretudo capitaneadas pela figura do Ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra que, saindo de casa consegue arregimentar ao longo do caminho soldados para atender ao pedido de Alzira. Enquanto a ajuda não vinha, Vargas acatou o pedido de Alzira:

‘“Papai, por que não tentamos o túnel que liga o palácio às dependências do Fluminense?’ O túnel secreto passava por baixo dos jardins do palácio e desembocava no estádio do clube, onde Alzira supunha que os reforços esperados estivessem a postos — talvez até já tivessem entrado por lá e se aproximassem do prédio. Vargas aprovou o plano, mas logo descobriu que a porta para o túnel estava trancada’” (LOCHERY, 2014, p. 34).

A tentativa de invasão dos insurgentes duraria até às cinco da manhã quando finalmente a polícia toma o Palácio Guanabara e dispersa o que restou dos sublevados pró AIB. O motim deixou o saldo de sete mortos e a possibilidade, felizmente gorada, de explodir a porta que ligava o Palácio ao estádio do Fluminense. Na última hora, o secretário de Vargas localiza um porteiro que tinha a chave da porta e assim a polícia junto com o Ministro Dutra – que estavam do outro lado do túnel, nas dependências do Fluminense – conseguem abri-la e resgatar os palacianos.

Fiz esta breve digressão histórica com o intuito de apresentar ao leitor o que nomeei no título deste texto, A cultura do tapetão. Pois bem, a nomenclatura tapetão surgiu no léxico brasileiro a partir do Fluminense Football Club:
“O Fluminense não só foi salvo de dois rebaixamentos pela Justiça Desportiva como também é o clube que inventou o tapetão. Em 1969, um advogado entrou na Justiça comum para pedir a absolvição de Flávio, atacante que havia sido expulso em um clássico contra o Vasco. O juiz entendeu que era inconstitucional punir um cidadão brasileiro sem direito de defesa e absolveu Flávio, que enfrentou o América no jogo seguinte e fez gol. O Jornal dos Sports estampou uma foto do tapete do tribunal, dizendo que o Flu tinha recuperado no tapetão vermelho o que perdera no tapete verde” (apud. ROSSI; MENDES, 2014, p. 79).

A cultura do tapetão tem o seu vernáculo inaugurado com o Fluminense, mas sua prática é antiga: no Brasil, os ganhos políticos de parte significativa das elites não são caudatárias de ações republicanas, aqui, ou ganha-se na bala ou no tapetão. Isto é, no Brasil o Estado é de direito oligárquico.

E é simbólico que a saída para um dos momentos mais críticos do Estado Novo – cujo chefe, Getúlio Vargas, tomou o poder à bala em 1930, permaneceu contrário à democracia por meio do tapetão em 1937, e só veio ser democraticamente eleito em 1950 – tenha se dado pelo túnel que dá acesso ao estádio do Fluminense, na referida noite de 10 de maio de 1938. E não seria o Fluminense o time da elite carioca, conhecido também como “pó de arroz”, e que futuramente ficaria conhecido como o “time da virada de mesa” a partir dos “subterrâneos/túneis” do combalido e maleável, no tocante aos interesses das elites futebolísticas, aparato regulador do futebol brasileiro: Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Vargas estava sendo encalacrado naquele ano (1938) por um grupo político que a literatura historiográfica chama de golpista, os Integralistas. Três anos antes fora o caso da Intentona Comunista (1935) que também tentou derrubar o governo de exceção Vargas, e que ademais são chamados de golpistas. Ora, pergunto-me, não era Vargas (até 1950) também um golpista? Há uma prática corriqueira em nossa cultura política: tenta-se restabelecer a democracia com golpe.

No Brasil, historicamente, os golpistas assentam praça tanto à direita quanto à esquerda do espectro político.
Há em nossa história uma sobreposição dos interesses e das práticas das elites sobre as camadas da base da pirâmide social. Ou seja, a cultura do tapetão surge em nossas elites e espraiou-se para as sendas das classes subalternas. Porém, não devemos ver este movimento de maneira mecânica na relação de causa e efeito: não é por que uma parte significativa da elite brasileira não segue os ritos do jogo democrático/republicano que as classes inferiores irão tomar o mesmo caminho.

A cultura do tapetão surge em nossas elites mas não é só praticada por elas. Agora, seu uso é mais danoso ao País quando ela é praticada pelas elites porque envolve vultuosos recursos materiais e simbólicos que vão desde a permanência do jogo democrático, à absolvição pela Justiça de políticos ou de grupos empresarias que desviaram milhões/bilhões do erário público.

Hoje nos encontramos em mais uma das encruzilhadas políticas que o Brasil mesmo costuma, estupidamente, se postar: deve seguir a regra do jogo democrático/republicano ou atender aos interesses de parte da elite econômica/política que, costumeiramente, querem vencer na bala ou no tapetão quando perdem nas urnas ou no gramado? É de bom-tom ficarmos alertas aos desdobramentos da cultura do tapetão nos próximos dias. Será que teremos (outros ou novos) encontros nos “subterrâneos” dos “túneis” da política brasileira? Quem será o chaveiro que abrirá a porta do “túnel” que liga os golpistas aos militares do outro lado? Olho vivo e faro fino porque os palácios e as corporações sobretudo de mídia (elites) estão confabulando contra os interesses da rua (democracia). É hora de detectar quem está no tapete vermelho (tapetão) e quem está no tapete verde (quem vai “limpo” na bola) da democracia.

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REFERÊNCIAS

LOCHERY, Neill. Brasil, os frutos da guerra. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
ROSSI, Jones; MENDES, Leonardo, Jr. Guia politicamente incorreto do futebol. São Paulo: LeYa, 2014.
Foto: Vista aérea do Palácio Guanabara às margens do estádio das Laranjeiras (Fluminense). Crédito: Google Imagens.