Gerardo Godoy Fajardo (UFRN, Letras Espanhol)
Procurando, em 2015, um apartamento na cidade de Natal para morar, visito diversos prédios novos e fico estarrecido com a existência do elevador de serviço, com a porta de serviço, com a área de serviço e com o quarto da empregada. É como se estivesse entrando numa alegoria de mau gosto das fazendas do Brasil colônia, quando os senhores de engenho e suas famílias moravam na Casa Grande e os escravos segregados na senzala. Considerar normal essa situação de vassalagem é naturalizar a desigualdade. De forma análoga, é como se a violência fizesse parte de um instinto. Contudo, essas realidades socioculturais são invenções que devem ser enfrentadas para que possamos aspirar a uma convivência com mais equidade e, dessa forma, com menos agressividade.
Questionei o simpático corretor de imóvel sobre essa porta extra na entrada do apartamento e sobre o isolamento da cozinha, pois transmitia a ideia de castigo para quem fosse lidar com as panelas, louças, também chamei a atenção sobre esse quarto sem janela e de péssima ventilação, pois é horrível para morar ou receber visitas. O vendedor, embora um pouco perplexo e já não tão amável com minhas observações, foi categórico explicando que se não fosse assim não haveria vendas.
Arquitetura esdrúxula para um país em transformação, pois nos últimos anos começa haver mudanças irreversíveis na situação legal e laboral para as empregadas domésticas, de difícil custo para os patrões, e com isso começamos a assistir uma diminuição drástica dessa atividade, que nunca teve futuro nem para o assalariado nem para a sociedade como um todo. De forma paralela, a ideia de cozinhar deixa de ser uma mera obrigação para as funcionárias do lar ou para as sofridas donas de casa, pois se torna cada vez mais atrativa a experiência gourmet e a de cozinhar na presença dos outros passa a ser uma tarefa mais lúdica. Nesse novo contexto, isolar a cozinha do resto da moradia é um conceito de uma arquitetura atrasada e manter o quarto da secretária do lar um arcaísmo social vergonhoso. A porta de serviço então deveria ser proibida por lei. Além de carregar uma grosseira exclusão social, traz embutido um racismo escravocrata. O corretor, sempre buscando vender seu peixe (embrulhado em jornal velho), justifica esse apartheid com toda naturalidade por conta da retirada do lixo, que na verdade deve ser tratado com o mesmo cuidado que temos ao fazer as compras no supermercado, separando item por item. O lixo é um problema de todos nós e não algo que simplesmente empurramos, sem misericórdia, para nosso próximo.
Nos países menos violentos, essa arquitetura de exclusão é quase inexistente. Ter empregados dentro do lar é algo só para milionários nas suas mansões, já que pouquíssimos profissionais poderiam ganhar o suficiente para ter tamanho privilégio sobre seus patrícios. De fato, esses países são desenvolvidos porque há menos pobreza e menos desigualdade. Entretanto, o Brasil sempre foi um país plural nos seus avanços sociais e tecnológicos. Em Natal, por exemplo, podemos ver ―sem assombro― uma carroça puxada por um jegue no meio de um engarrafamento de carros aparelhados com GPS. No chamado mercado imobiliário (termo e prática equivocados, uma vez que a moradia é um direito cidadão que não deveria ser objeto de especulação financeira) existem empreendimentos mais antenados com os novos tempos, pois eliminam a pequena senzala e desenham a chamada cozinha americana, mas são tão escassos como as pessoas que se revoltam contra a desigualdade e não contra os marginais.
Graças às mídias, a violência é entendida como um problema policial ou militar, quando é muito mais complexo. Fenômeno, que envolve diversos fatores que devemos levantar e discutir com maturidade. Agora focamos a natural desigualdade de ter uma empregada doméstica dentro de casa – realidade que fica fossilizada na arquitetura urbana. Para a maioria das pessoas não há nada de errado: ela é tratada como uma amiga da família (teria que ser uma amiga esquizofrênica para passar décadas servindo seus pares); uma amiga que terminará seus dias na senzala urbana do lado dos seus familiares e junto à maior parte da população brasileira. Embora ela tivesse cuidado dos afazeres sem fim e sem horário fixo, embora ela tivesse folgado como presidiário em regime fechado, embora ela tivesse sido coagida a fazer serviços extras dentro de casa, ela sempre será lembrada como um membro a mais da família, mas sem direito a quase nada quando mereceria muito mais. Aqueles filhos, netos e bisnetos com quem ela viveu como mãe, avó e bisavó, talvez tenham a cortesia de depositá-la num asilo indigesto ou de entrega-la aos seus familiares naquela outra cidade dentro da cidade, como um pano de chão que não dá para a próxima faxina.
Talvez para a classe alta e média (ou até mais baixas) seja normal ter uma empregada dentro de casa, assim como todo um conjunto de subalternos que auxiliam o cotidiano nos mais variados espaços coletivos e privados, mas para quem está na base dessa pirâmide, exposto aos mesmos estímulos consumidores de quem está no topo, essa desigualdade não é nada natural nem cordial. É provável que aquela mulher que passou décadas nesse canto esquisito dos lares brasileiros ―servindo seus patrões―, aceite seu desígnio neste mundo como uma passagem para outro, mas tudo indica que as novas gerações de excluídos ―quiçá os próprios filhos da empregada― não. Cada vez mais os jovens vivem sob o signo do divino consumo e tendem a optar por uma solução que deixa suas vidas por um fio. De fato, em muitos casos o crime é mais do que uma boa alternativa para os empregos subalternos: uma oportunidade de curtir ao máximo uma vida rápida e que, diante das evidências, carece de futuro.
Com esse quadro, temos uma tarefa gigante, tão grande como a muralha da China, mas não bélica como essa, pois, reiterando, a solução não é nem policial e muito menos militar. Não adianta ter condomínios amuralhados quando o problema vive conosco e dentro de nós. As novas leis para as empregadas domésticas perfilam mudanças de mobilidade social que já observamos na última década, mas essa é uma possibilidade para uma parte da população que vê seu mundo mudar aos poucos, a outra, que é minoritária, precisa mudar sua mentalidade e práticas cotidianas. Os arquitetos brasileiros, por exemplo, devem deixar de desenhar apartamentos como quem faz uma fazenda canavieira no Brasil dos holandeses e os compradores não devem ficar inertes pensando em voz alta: depois poderia derrubar essa parede e ampliar o armário, também posso virar esse banheirinho para o corredor. Será que pode? Devemos deixar o jeitinho de lado e exigir um comportamento mais racional. Essa filosofia da improvisação compartilha com a violência varias páginas de uma mesma história.
Concluindo, dentro das fronteiras que se fecham para migração, nos chamados países ricos, as tarefas do lar, geralmente, são divididas entre seus componentes e as pessoas tem que se virar com essa realidade. Dentro dessas nações as desigualdades sociais não são obscenas e a mulher não vive relegada as tarefas do lar. Nesse contexto, o fogão muitas vezes fica esquecido, pois existem outras formas de correr atrás do alimento. Essa realidade de primeiro mundo pode ser um pouco esquisita e incômoda para os parâmetros brasileiros das classes A, B, C,… , que sempre tiveram alguém engraxando seu sapato, mas seria um bom passo para uma mudança em longo prazo. Para finalizar, devemos lembrar que os chineses levaram mais de um milênio para fazer (e refazer) a maior construção bélica da humanidade no intuito de se defender dos mongóis e de outros povos. Essa monumental obra teve um custo sem precedentes de vidas humanas e de recursos, mas acabou sendo pouco efetiva, pois os povos ―tanto chineses quanto bárbaros― acabaram passando de um lado e para o outro, fazendo com que a diplomacia deixasse o muro no ostracismo. Tomara que aqui, enclausurados nas nossas fronteiras arquitetônicas e sociais, não tenhamos que esperar mil anos para perceber os erros que nos separam e amedrontam num falso contexto de cordialidade. Oxalá, pois já se passaram quinhentos anos e mesmo com as mudanças que houve ―como o fim da escravatura― persistem erros antigos que naturalizam diversos absurdos.