Os estudos da Semiótica confirmam, se não a eficiência, pelo menos a lógica linguística da chamada “magia simpática” ou simplesmente “macumba”: a busca de contiguidade física de comunicação entre a ordem sobrenatural e feiticeiros ou xamãs e de objetos que criem relações de semelhança entre o despacho e a vítima/beneficiado. Paradoxalmente, é nas manifestações atuais de magia e religião por meio de mídias digitais (“macumbas on line” por meio de internet e celulares iPhone) que encontraremos mais irracionalidade do que nas formas arcaicas: como é possível a magia por meio de algoritmos cuja natureza é simbólica, arbitrária e fragmentada?
Essa postagem se originou em uma questão levantada por um aluno em uma aula de Estudos da Semiótica na Universidade Anhembi Morumbi. Estava apresentando a tricotomia básica dos signos da Semiótica peirciana (de Charles Sanders Peirce, filósofo, cientista e matemático norte-americano, fundador da ciência dos signos, a Semiótica): índices, ícones e símbolos. Descrevia o índice como o signo mais primitivo por fazer parte, inclusive, dos fenômenos naturais (a fumaça como índice do fogo ou o trovão como o índice do raio), além de servir de orientação para os animais (por meio do olfato). Por ser sua percepção de natureza intuitiva, os índices têm forte presença nas sociedades chamadas de “primitivas” onde são intensamente percebidos e se tornam sinalizadores cotidianos (mudanças atmosféricas, caça etc.). Um aluno questionou se as formas mágicas (“macumbas”, “despachos” etc.) primitivas também não seriam formas de ação humana carregadas de índices.
Essa questão iniciou uma interessante (e até divertida), por assim dizer, “análise semiótica da macumba”. No final, uma questão: como é possível práticas tão indiciais conviverem na atualidade em mídias simbólicas digitais (macumbas, despachos ou simpatias e até confissões de pecados online até as formas secularizadas de magia como sessões de psicanálise ou vidências e tarot pela internet)?
Principalmente para aqueles que não estão familiarizados com as discussões semióticas, vamos iniciar essa discussão explicando melhor a tricotomia dos signos.
Dos índices aos símbolos
Para a Semiótica, o índice é o signo mais primitivo por estar quase que colado ao objeto de referência, confundindo-se o
signo com o próprio objeto. O índice é um signo que aponta para si mesmo. “O corte semiótico (a diferença entre o signo e a coisa, mapa e território) não é evidente ou ainda não se encontra estabilizado: o índice é “a fragment torn away from the object” [um fragmento extirpado do objeto, em tradução livre] (Peirce); sua referência é, portanto, autorreferencial, a coisa é remetida ou se refere, a ela própria, sem sair do lugar, circularmente.”
Cheiros, pegadas, impressões digitais etc., são como fragmentos de um objeto, partes desprendidas de um todo. A impressão digital indicia a presença de alguém. É como se a pessoa tivesse deixado um fragmento de si mesmo no local. Os animais orientam-se no mundo principalmente por meio dos índices, por serem signos carregados de materialidade. Em outras palavras, os índices têm um vínculo de representação por contiguidade. Isto quer dizer que são signos com um vínculo físico e/ou existencial com o objeto.
A própria essência da representação (alguma coisa que está no lugar de outra) já se percebe no ícone. Um desenho que eu faça de uma pessoa que posou para mim resulta de uma projeção do referente em um material que não lhe é idêntico (a carne e o osso da pessoa são projetados para a superfície de um papel). Dessa maneira, os ícones abandonam a contiguidade indicial para adotarem a similaridade.
Enfim, os símbolos, rompendo com a continuidade (a semelhança) e também com a contiguidade, reagrupam todos os signos arbitrários propriamente ditos: a imensa maioria dos signos linguísticos, a placa de sinalização “sentido proibido” ou “estacionamento proibido”, o simbolismo químico ou algébrico, portanto, além da linguagem, o domínio dos números em geral. Os símbolos são os signos mais abstratos e distantes do objeto.
Os símbolos criam uma nova forma de relacionamento com o mundo, digital, descontínua, abstrata. É a manipulação de significantes sem a concreção analógica dos elementos da realidade. A evolução dos índices para os símbolos é a própria evolução do particular ao universal.
Os índices na “magia simpática”
De forma geral se pressupõe que toda magia é simpática por basear-se no princípio da semelhança. Isso significa que a magia é uma forma ritual de forçar poderes ocultos a satisfazer a nossa vontade por intermédio, principalmente, de partes de pessoas ou objetos distantes que deverão sofrer a ação. Pedaços de roupas, mecha de cabelo, marcas de mão na terra, a água do rio onde alguém se banhou etc. são, semioticamente falando, fragmentos ou índices do objeto da magia. O índice é um signo que aponta para ele mesmo, um signo semelhante ao objeto com uma relação física. Por isso o índice é um perfeito condutor da “simpatia” pelo liame físico. Assim como a fumaça dos charutos, cuja forma fluida se assemelha aos espíritos, é o índice que conduz o espírito guia ao seu “mula”, isto é, ao seu médium.
Se pensarmos nos quatro elementos que compõem a magia segundo a antropologia de Malinowsky e Mircea Eliade (a saber, o pensamento animista, o indivíduo – feiticeiro, xamã etc. – a preparação e o rito mágico) perceberemos que em todos eles estão presentes operações semióticas indiciais.
Se no pensamento animista o mundo é animado por forças sobrenaturais, cada evento possui uma relação de contiguidade com algum outro evento, não restando lugar para o acaso. Se alguém torce o pé logo depois de beber água durante o almoço, pode se estabelecer uma relação de contiguidade entre água e o acidente e não beber mais água na refeição. Dessa maneira, o mundo passa a ser animado por forças que estabelecem bizarras contiguidades entre fatos aparentemente aleatórios (princípio mágico da semelhança, ou “simpatia”).
Xamãs, feiticeiros ou médiuns são aqueles que possuem dons de estabelecer relações de contiguidade com espíritos ou forças sobrenaturais. Formas fluidas (fumaça, cachaça, água) são condutores indiciais. Pode parecer bizarra tal analogia, mas assim como no desenho animado onde vemos o ratinho Jerry flutuando no ar ao seguir o rastro do cheiro do queijo (o cheiro como índice que conduzirá ao referente), da mesma forma a fumaça do charuto, os odores fortes de ervas e incensos são liames físicos por meio dos quais forças e entidades conectam com o indivíduo que manipula a magia.
Na preparação escolhem-se basicamente objetos de natureza indicial governados pelos princípios de contiguidade e semelhança (como, por exemplo, os bonecos de vudu que buscam se assemelhar à vítima ou fotos em macumbas). Embora a semelhança (ou similaridade) seja uma característica do ícone (representar um referente por meio de um material que não lhe é semelhante), essas iconografias devem ser “recheadas” ou reforçadas necessariamente por índices da vítima/beneficiado (sangue, unha, manuscrito etc.) para que se crie um liame físico.
E finalmente o rito mágico onde predominam os elementos de invocação: cânticos, instrumentos musicais, danças, roupas, ornamentos etc. Sons proferidos das próprias bocas dos participantes (portanto, formas simbólicas de gravação de áudio em mídia digital ou analógica, por exemplo, não funcionariam), formas plásticas e fluidas. As ondas sonoras têm a mesma natureza indicial da fumaça: invocação por meio do oferecimento de um canal físico (no caso, as vibrações sonoras) para que se estabeleça uma relação semiótica de contiguidade entre humanos e a ordem sobrenatural.
Macumba digital?
Portanto, a magia é essencialmente indicial, analógica. Embora lide com o mundo sobrenatural, sua prática é física ao buscar relações semióticas contiguas e de semelhança. O que dizer, então, da magia por meio de mídias digitais como a Internet como sites que oferecem despachos para emagrecer e encontrar namorado ou pagamentos de promessas online? Ou de formas religiosas como a confissão sem a presença do padre por meio de um celular iPhone ou, então, de formas secularizadas de magia com tarot ou sessões de psicanálise online?
Paradoxalmente, é nessas formas digitais de magia simpática que encontramos a manifestação contemporânea do sobrenatural na sua forma mais irracional. Por mais incrível que possa parecer, há uma ordem racional ou lógica na magia simpática arcaica (por meio de todo um sistema linguístico de representações por contiguidade e semelhança). Ao contrário, é nas mídias digitais da atualidade que encontramos o mais absoluto “non sense”: como algoritmos (signos descontínuos, arbitrários, sem relação com o mundo sensível) podem ser veículos de invocação ritual?
Por um ponto de vista semiótico, jamais os signos digitais podem representar o elemento “simpático” da magia.
Por exemplo: forma secularizada de magia, a psicanálise trabalha com um elemento indicial importante, a “transferência” (por semelhança, a relação analista/paciente vai reproduzir a mesma relação pais/filho da origem do trauma). Como uma mediação sígnica por meio de uma interface (tela e algoritmos) pode ser condutor indicial desse elemento “simpático”?
O emocional, o espiritual, o sensível ou todos os demais elementos que fazem parte da ordem do “oculto” jamais se manifestariam sem os elementos simpáticos da magia: o rito, a invocação indicial, a contiguidade nos elementos de preparação da “macumba” etc.
O retorno da magia em mídias tão tecnologizadas como as digitais são sintomas da nostalgia da perda da percepção intuitiva e sensível da realidade. Mas, ao mesmo tempo, os algoritmos imantados de simpatia são o nosso mecanismo de defesa paródico ao rirmos de sites como o “Macumba Online” que promete despachos “delivery” para quem tem “preguiça de ir ao terreiro”.