“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. John Donne, Meditações VII.
Por Renato K. Silva (Escritor e Doutorando em Ciências Sociais)
Os recentes ataques terroristas promovidos pelo Estado Islâmico ocorridos na última sexta-feira (13/11), nas ruas de Paris, com mais de 120 vítimas, reacendeu uma macabra onda de comparações de tragédias sobretudo nas redes sociais. Não bastasse a estupidez e a postura ignóbil de tais comparações, tal qual ocorrera no início do ano com os ataques ao periódico Charlie Hebdo, quando a campanha “Je suis Charlie” transbordou as redes sociais e ganhou à civilização Ocidental, a da última sexta-feira trouxe o mesmo estreitamento de raciocínio e indiferença frente à dor alheia.
Quando se vive uma época onde o luto do Outro é legislado a partir de uma lógica comparativa da quantificação da tragédia, é preciso repensar nossas posturas de uma maneira radical, do contrário, as hecatombes sejam naturais ou antrópicas, serão iguais ao modus operandi de um sinistro filatelista: minhas desgraças são maiores, mais raras e mais numerosas que a suas. Argumenta-se que qualquer incidente na França (leia-se também qualquer país de posição central na produção de bens simbólicos e materiais no capitalismo) seja ele natural ou antrópico, mobiliza milhões de simpatizantes à causa. É evidente que o mundo Ocidental condoer-se-á com as nações pares.
Quando falo em pares refiro-me ao conjunto de comunidades imaginadas (nações) erigidas no tripé cultural legados especialmente por: Grécia, Roma e o Cristianismo. A identificação do mundo ocidental frente às tragédias ocorridas na França este ano levanta duas hipóteses: a primeira é que a França carrega um capital simbólico fundando a partir da Revolução (1789) em que a Igualdade, Liberdade e Fraternidade foram a bandeira tricolor que envolveu o novo homem ocidental nascido das cinzas do Ancien Régime, por intermédio das ideias do Iluminismo que despojou o poder civil (Estado) de sua malfadada união com a Igreja. Esta que legitimava a dominação do povo pelas dinastias atribuídas de uma pretensa autoridade divina. Em uma palavra, a Revolução Francesa nos foi ensinada como um “Novo Testamento” na História Mundial. Isso demonstra que mesmo não sendo a grande potência econômica mundial, a França ainda detém uma relativa aura de guardiã dos valores que orientaram e orientam as democracias e, por conseguinte, o modo de vida deste lado de cá do globo terrestre.
A segunda hipótese é uma extensão da primeira e aqui falarei mais detidamente sobre a relação das tragédias na França com sua ampla adesão solidária nas redes sociais. Foi o sociólogo norte-americano Charles Wright Mills que falou: “A história do homem moderno é a história mundial”, com esta sentença construída no frenético decênio de 1960, onde o semiólogo canadense Marshall McLuhan dizia que estávamos vivendo em uma “Aldeia Global”, o homem moderno a partir de então começou a deparar-se com problemas que antes não fazia parte do seu cotidiano, ou se fazia, vinha com um relativo atraso. Dos anos 1960 para cá, com a radicalização do processo de globalização, as fronteiras do tempo e do espaço só fizeram diminuir. Ou seja, a simultaneidade de eventos e fenômenos mundiais não são mais recepcionados com atraso. Eles são recebidos ao vivo em nossas algibeiras por meio dos nossos smartphones. Não só a história moderna passou a fazer parte de nossas vidas como também sentimo-nos parte dela por uma estranha sensação de intimidade que, acredito, seja atribuída à própria proximidade dos dispositivos móveis rente aos nossos corpos.
A narrativa (ou epopeia) do homem contemporâneo é a tecnologia, e esta modifica profundamente nossa relação com o próximo (mesmo distante) e com a história do nosso tempo. As pessoas que modificaram os avatares no perfil Facebook para “Je suis Charlie” ou para o tricolor da bandeira da França que, não é demais lembrar, significa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade é por que a França está mais próxima delas do que por exemplo o município de Mariana (MG); ou de uma hecatombe em Nairóbi, Jacarta ou até de uma chacina da PM na periferia de sua cidade. Ora, se fizermos um breve exercício de investigação, veremos que esta pessoa que mudou o avatar do seu perfil no Facebook, provavelmente fez ou faz um curso superior, se for de humanas, a bibliografia que lê é eminentemente francófila assim como a literatura e os filmes da nouvelle vague que usufrui.
Então quer dizer que a compressão do tempo e espaço na história mundial que é a história do homem contemporâneo é seletiva? Sim, é seletiva porque o mercado de bens simbólicos é dominado por grupos e corporações multimídias que enfatizam certas notícias e certas reportagens em detrimento de outras. Se não mostra uma chacina da PM ocorrida na periferia de uma capital brasileira é porque há interesses envolvidos para que não se veicule tais informações. Outra, o Facebook é uma multinacional – de origem estadunidense – e ela cria os avatares que lhe interessa. Porque a empresa de Mark Zuckerberg não cria avatares contra a Prisão de Abu Ghraib ou a Base de Guantánamo? Acredito que não é do interesse da empresa arrumar briga com Washington.
Em suma, o que não dá para aceitar é o pensamento vil de fazer comparações de tragédias ou pôr o dedo em riste no teclado bradando ou compartilhando informações desta natureza: “a França está colhendo os frutos do intervencionismo no Oriente Médio”, como se a barbárie da intervenção francesa justificasse a barbárie do Estado Islâmico. Ou também desdenhar da dor alheia por achá-la alienada das dores nacionais. Não há alienação na dor tampouco hierarquia. Se a dor do outro não lhe diz nada ou se acreditas que ela seja pura vaidade, o mínimo que deves fazer é silenciar diante dela e não tripudiar porque quando banalizamos a dor do Outro, por extensão, estamos banalizando a nossa.