Ou: Breve comentário sobre Literatura e Twitter
Desde o final do século passado a internet vem revolucionando nossa maneira de experimentar o mundo. Com a rede mundial de computadores surge também a possibilidade de habitar um espaço que deixa de ser predominantemente físico e se torna virtual: estamos todos em todos os lugares o tempo todo, contrariando a lei mais básica da Física. Um amontoado de bits e bytes pra lá e pra cá cria uma realidade que, embora não seja palpável, é tão real quanto uma caneta que você joga dentro do bolso. As trivialidades do dia a dia, como ir ao correio, pagar uma conta no banco ou fazer compras podem acontecer, todas elas, mediadas pela tela de um computador.
E esse processo que a nossos olhos destreinados parece um boom, não passa, por enquanto, de um discreto burburinho. A forma da Virtualidade ainda está muito longe de tomar contornos cristalizados (se é que um dia isso ocorrerá). À medida que vamos entendendo, pouco a pouco, como habitar esse novo “espaço além do espaço”, novas formas e ferramentas de interação social vão sendo criadas.
Pense a internet como a Metrópole Moderna do século XVII. Quando as populações começaram a sair do campo em direção à cidade, a metrópole, como a conhecemos hoje, ainda não tinha sido configurada. O ambiente urbano era caótico, não dispunha de infraestrutura básica e as pessoas não sabiam ao certo como lidar com o choque da multidão. A internet, marco da mudança de uma era [adeus, Modernidade!], traz a multidão da metrópole para dentro dos nossos lares.
E estamos nós, aqui, tentando adaptar nossos paradigmas modernos a um mundo que ainda estamos tentando apreender. A internet é uma tormenta que passa abalando todas as estruturas sociais que conhecíamos como estáveis e universais ao mesmo tempo em que permite que nos sentemos no olho do furacão, em paz e indiferentes à perturbação do mundo ao nosso redor. Como tecnologia cultural, a internet não só media a ambivalência típica da Modernidade, como também a acentua e a difunde em milésimos de segundos.
Não precisamos mais ir ao supermercado, as compras, por delivery, vêm até nossas casas (assim como os camponeses não precisavam mais ir até a horta, tudo estava disponível na cidade). Reuniões de amigos já não dependem mais de longos deslocamentos – de um vilarejo a outro, do cortiço ao café da esquina. Hoje estamos a uma tela de distância de qualquer ponto do mundo. Os possíveis paralelos entre modelos modernos e novos paradigmas pós-internet são infinitos. E é seguindo esse fluxo de comparações que eu me pergunto: qual de nossos modelos culturais hegemônicos o Twitter, em suas potencialidades, põe em xeque?
O Twitter é uma ferramenta multifacetada e flexível que serve a diversos fins (nunca um fim em si) ‒ de diário indiscreto a veículo de comunicação sobre as notícias do planeta. Uma das possibilidades de uso dessa ferramenta, ainda muito pouco explorada, é o Twitter como suporte literário.
Hoje, a Literatura na ferramenta (muito além dos limites modernos das livrarias e bibliotecas) se apresenta em duas grandes frentes: i) a divulgação do trabalho de escritores ‒ jovens independentes ou clássicos agenciados por editoras ‒ e, ii) a criação de nanoliteratura em 140 caracteres pelos usuários da ferramenta.
Essas duas grandes frentes desconsideram parte essencial do conceito de interatividade da ferramenta. Ao divulgar produções literárias publicadas em outras plataformas, bem como ao criar nanoliteratura, os autores, editores e usuários se valem do Twitter, em última análise, como um pedaço de papel, um suporte material para a divulgação de um produto (ideológico ou mercadológico). Fazem panfletagem virtual. Nesses casos, a interação com a multidão fica restrita ao momento pós-criação, à avaliação e discussão sobre o produto final do processo criativo.
É possível – e, a longo prazo, inevitável – trazer a interação para dentro do processo criativo. Quero dizer: se Machado de Assis tivesse produzido na nossa Era Tuítica, poderíamos não só discutir com Machado sobre Brás Cubas, mas também com Brás Cubas, o próprio, sobre ele mesmo. E Machado de Assis, homem com visão de futuro, teria nos dado esse prazer com absoluta certeza.
É esse detalhe ‒ a possibilidade de interação em tempo real e sem mediação autoral entre personagem e leitor ‒ que anda sendo negligenciado pela nova geração de escritores. Presos a paradigmas modernos (e dentro em breve ultrapassados) de processo criativo, produto literário, publicação editorial e, principalmente, da forma e da função do autor em uma obra de ficção, os jovens escritores vêm revolucionando os conteúdos literários, mas ainda ficam tímidos ao propor novas formas para a Literatura.
Em um mundo no qual a multidão, sob sua regência, invade a sala da sua casa, esperar que a interação se dê apenas com o produto literário final, e não ao longo do processo criativo, é fincar um pé no passado e se recusar a contestar estruturas ainda não falidas, mas completamente rotas. (A mais rota delas, entre tantas outras, é permitir que interesses político-editoriais ditem o que será ou não disponibilizado ao público-leitor, e em que tempo, espaço e medida essas obras poderão ser consumidas.)
Pensar novas formas a partir das possibilidades trazidas pelas novas ferramentas, e não apenas utilizá-las para reproduzir formas já cristalizadas, é condição sine qua non para os jovens pensadores de hoje em dia. E os escritores de ficção não ficam fora dessa.
E eu, pobre leitora desamparada, fico aqui me perguntando: qual de vocês terá seu nome lembrado no século XXII por ter escrito o primeiro Romance interativo da História da Literatura? Espero que seja um entre os meus.