“Você vai gostar, Bia. A história é muito boa. Talco de Vidro é um ensaio sobre a inveja, é como um ensaio sobre a inveja. É muito bom.”
Eu não conhecia o Quintanilha nem o trabalho dele até a hora em que sentamos para almoçar, antes da oficina que ele iria dar aquela tarde. “Um ensaio sobre a inveja”. A personagem Rosângela e o sorriso da prima, um final que ninguém iria me dizer. Tive de ler essa inveja.
Rosângela desde o começo tendo pensamentos que ela não… pensa, propriamente, mas que ela sente. A posição social, o carro novo, o marido médico, os filhos na escola particular. O consultório no centro de Niterói, presente do pai, o apartamento duplex. E tudo o que sempre fora até ali, tudo o que previsivelmente iria acontecer dali pra frente. “E isso era a vida normal, meu Deus do céu”, “a coisa mais natural do mundo”, o narrador diz. Ela pensa. Ela sente.
O tanto que Rosângela pensa sem pensar, pensa sentindo, ou, melhor ainda, pensa sem assumir: o quadro social completo, elevado e seu, e tudo isso posto abaixo por causa de um sorriso. Uma amálgama no lugar da resina, ela põe, pra encobrir o sorriso e o próprio fracasso dessa vida onde tudo, tão elevado, “era a coisa mais natural do mundo”.
Talco de Vidro não é um ensaio sobre a inveja. É um ensaio sobre o vazio. A história atravessa as culpas e a dita pena do outro, que na verdade é uma pena de si; encara alguma inveja, sim, e apatia, mas para levar sempre a isso: ao vazio.
Se Marcello Quintanilha desenhou uma mentalidade (mais que um personagem), como ele diz, se ele pincelou a autodestruição, alguma depressão, ou um quadro mais confuso que isso, só o leitor pode escolher (sem defender). Para mim, ele desenhou e escreveu sobre um vazio acachapante, doloroso, sentido às escondidas, um vazio que nunca assumimos sentir.
As imagens em preto e branco e os olhos firmes (e, em muitos quadros, vazios) de Rosângela só tornam essa percepção mais forte. Os olhos de uma, o sorriso da outra. Os olhos de uma no sorriso da outra.
Se Rosângela pensava tanto sem pensar, assim, não pensava, só sentia mesmo, o autor escreveu sobre esse vazio sem nunca falar sobre ele. Sem encostar no significado da falta, de tudo o que falta enquanto as vidas parecem completas e boas. Ele escreve sobre isso sem escrever, e o leitor também pensa sem pensar tanto: só sente.
Talco de Vidro é um quadrinho absolutamente sensível, e sua história e personagens se esparramam para muito além dele. Sua história, seus personagens, e o vazio: se esparramam para muito além dele. E, se não me engano, é disso que se trata uma boa literatura.